Peter Pan & Wendy
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PETER ATRAVESSA

Todas as crianças, menos uma, crescem. Elas entendem isso rápido. Wendy descobriu esse fato com apenas dois anos. Nesse dia, a pequena brincava em um jardim, colheu outra flor do chão e decidiu levá-la correndo para sua mãe. Provavelmente, estava tão encantadora que a senhora Darling, ao vê-la, pôs as mãos no peito e suspirou: — Ah, por que você não fica assim para sempre? Bastou isso para, desde aquele dia, Wendy entender que deveria, obrigatoriamente, crescer. Todos nós sabemos disso. Percebemos logo após alcançarmos os dois anos de idade. Dois anos é o começo do fim. A família morava na casa nº 14. Antes de Wendy chegar, sua mãe mandava em tudo. Era uma pessoa adorável, com a cabeça cheia de ideias românticas e palavras doces e provocadoras. Seus pensamentos eram como os jogos de caixinhas lá do Oriente misterioso, aquelas que cabem uma dentro da outra. Não importa quantas você abra, sempre encontrará mais uma dentro. Na boca graciosamente provocadora da senhora Darling havia um beijo que Wendy nunca conseguiu ganhar, embora estivesse ali, eternamente visível, no cantinho direito dos lábios. O senhor Darling a conquistou da seguinte maneira: muitos rapazes que foram meninos na mesma época em que ela ainda era uma menina descobriram, simultaneamente, que a amavam. Todos correram até sua casa para pedi-la em casamento, exceto o senhor Darling, que foi de táxi e chegou primeiro. Foi assim que ele conquistou quase tudo nela, menos aquela caixinha mais escondida e o beijo do cantinho direito dos lábios. Aliás, ele nunca sequer soube da existência de tal caixinha. Depois, com o passar do tempo, também desistiu do beijo. Wendy achava que Napoleão teria conseguido, mas posso imaginá-lo tentando e desistindo irritado, batendo a porta. O senhor Darling costumava se gabar para Wendy. Ele costumava dizer que sua mãe não somente o amava, mas também o respeitava. Era um daqueles sujeitos sérios que conhecem o mercado financeiro. Claro que ninguém entende de verdade esse tal mercado, mas ele parecia mesmo entender. Às vezes, dizia que as ações tinham subido e que o valor dos títulos havia caído. Falava com tanta propriedade que qualquer mulher o respeitaria. A senhora Darling se casou de branco. No começo, ela mantinha as contas da casa perfeitamente organizadas, quase com alegria, como se quisesse ganhar uma competição. Não deixava de anotar sequer o preço de um maço de couve. No entanto, pouco a pouco, couves-flores inteiras foram deixando de ser contabilizadas. Agora, o que havia nos livros-caixa eram desenhos de bebês sem rosto. Ela os desenhava em vez de fazer contas. Era como se os estivesse atraindo. Assim, primeiro veio Wendy, depois John e, por fim, Michael. Uma semana ou duas após Wendy chegar ainda pairavam dúvidas se eles seriam capazes de criá-la. Afinal, tratava-se de mais uma boca para

alimentar. Por mais orgulhoso que o senhor Darling estivesse com o nascimento da filha, ele era um homem zeloso com as contas da casa. Sentado à beira da cama, ele segurava a mão da esposa enquanto calculava as despesas futuras. Ela, por sua vez, suplicava com os olhos. Queria arriscar, fosse como fosse. No entanto, não era assim que ele fazia as coisas. Tudo deveria estar na ponta do lápis. Preto no branco. Se acaso os palpites da senhora Darling atrapalhassem suas contas, ele as recomeçava. — Não me interrompa agora — ele implorava. — Cheguei a uma libra e dezessete xelins1 de despesas da casa, mais duas libras e seis xelins no escritório. Posso cortar o café que tomo lá, digamos que dê dez xelins; isso nos deixa com duas libras, nove xelins e seis centavos; somando com seus dezoito e três, temos três libras e sete; com as cinco zero zero do salário, dá oito libras, nove e sete... Quem está se mexendo? Oito, nove, sete, vão sete... Não diga nada, minha querida... E tem aquela libra que você emprestou para o homem que veio pedir à porta... Quietinha, minha criança. Soma mais uma criança... Pronto, já me perdi! Eu disse nove libras, nove xelins e sete centavos? Sim, eu disse. Nove, nove e sete. A pergunta é: conseguiremos passar um ano com nove, nove e sete? — Claro que conseguiremos, George! — a senhora Darling exclamou, tomando partido sempre a favor de Wendy. Contudo, ele era o mais firme dos dois. — Lembre-se da caxumba! — anunciou ele quase em tom de ameaça e começando tudo de novo. — Para a caxumba, vamos reservar uma libra, mas imagino que está mais para trinta xelins... não fale agora... Sarampo, uma libra e cinco; rubéola, meio guinéu, isso dá duas libras, quinze xelins e seis... Nada de batucar esse dedinho... para tosse comprida, uns quinze xelins...

E seguia somando, porém, as despesas sempre apresentavam resultados diferentes. Por fim, os gastos com Wendy couberam nas contas, mas foi por pouco. O custo da caxumba, por exemplo, foi reduzido a doze xelins e seis centavos, enquanto sarampo e rubéola terminaram contabilizados como uma única doença. A chegada de John causou o mesmo alvoroço. Michael passou ainda mais apertado, mas eles ficaram com os dois. Em pouco tempo era possível ver os três caminhando em fila para o jardim de infância da senhorita Fulsom, acompanhados de sua babá. A senhora Darling gostava das coisas muito corretas. O senhor Darling era obcecado em ser exatamente como seus vizinhos; portanto, é óbvio que tinham uma babá. Como não tinham dinheiro, por conta da quantidade de leite que precisavam comprar para as crianças, essa tal babá era uma cadela toda orgulhosa, da raça terra-nova, chamada Nana, que não tinha casa até ser contratada pelos Darlings. No entanto, Nana já tinha experiência em zelar pelos pequenos mesmo antes disso. Ela conheceu os Darlings em Kensington Gardens, onde passava seu tempo livre xeretando carrinhos de bebê e fazendo inimizade com as babás desleixadas, já que as seguia até suas casas e as denunciava às patroas. Nana provou ser uma babá bastante valiosa. Era rigorosa na hora dos banhos e, à noite, ficava alerta ao menor ruído que seus protegidos fizessem. Obviamente sua casinha ficava no próprio quarto das crianças. Tinha um talento nato para saber quando uma tosse era algo sem importância ou quando exigia um cachecol no pescoço. Acreditava piamente na eficácia dos remédios antigos, como folha de ruibarbo. Bufava em desprezo quando ouvia modernices sobre germes e coisas do tipo. Vê-la acompanhando as crianças à escola era uma aula de etiqueta: caminhava placidamente ao lado delas quando andavam bem-comportadas e lhes dava cabeçadas até voltarem para a fila caso tentassem se desviar do caminho. Nos dias em que John tinha futebol, ela nunca esquecia de fazê-lo levar um agasalho. Nana geralmente carregava

um guarda-chuva na boca, caso chovesse. Na escola da senhorita Fulsom havia um porão que servia como sala de espera para as babás. Lá, todas aguardavam sentadas em cadeiras escolares enquanto Nana ficava deitada no chão. Essa era a única diferença entre elas. As babás agiam como se Nana não estivesse lá, como se fossem de uma classe muito superior, e a cachorra, por sua vez, tinha horror às fofocas. Nana também não gostava nem um pouco das visitas que as amigas da senhora Darling faziam ao quarto das crianças. Ainda assim, quando isso acontecia, ela trocava o babador de Michael por um azul com bordados, ajeitava as roupas de Wendy e dava uma lambida rápida no cabelo de John. Nenhum outro quarto de criança era cuidado de maneira mais correta. O senhor Darling sabia disso, embora às vezes se preocupasse com o que os vizinhos pudessem comentar. Afinal, ele tinha uma reputação a zelar na sociedade. Havia outra questão sobre Nana que também o inquietava. Ele às vezes tinha a impressão de que ela não o respeitava. — Tenho certeza de que ela tem uma enorme admiração por você, George — a senhora Darling tentava acalmá-lo e então sinalizava às crianças para que fossem especialmente amorosas com o pai. Logo começavam a dançar alegremente, ocasiões em que a única outra criada, Liza, às vezes era convidada a participar. Ela parecia uma anã com sua saia longa e a touca de empregada, grandes demais para ela, embora tivesse jurado quando foi contratada que seus tempos de criança tinham ficado para trás. Como eram alegres aquelas brincadeiras! Mais alegre ainda era a senhora Darling, rodopiando tão animadamente que a única coisa visível nela era o beijo. Nesses momentos, se alguém corresse até ela talvez conseguisse roubá-lo. Não havia no mundo família mais feliz. Isso durou até a chegada de Peter Pan. A primeira vez que a senhora Darling ouviu falar sobre Peter Pan foi quando estava organizando os pensamentos de seus filhos. É costume de

toda boa mãe, depois que as crianças vão dormir à noite, vistoriar as mentes delas e garantir que tudo esteja em ordem para a manhã seguinte, recolocando nos devidos lugares os muitos pensamentos que vagaram por lá durante o dia. Se você conseguisse ficar acordado durante a noite (coisa da qual obviamente não é capaz), poderia ver sua mãe fazendo o mesmo. Aposto que acharia muito interessante assisti-la. É como organizar gavetas. Você veria sua mãe ajoelhada, imagino, perdida em pensamentos divertidos sobre algo que ela encontrou lá dentro da sua cabeça, perguntando-se onde é que você foi descobrir aquelas coisas, fazendo deduções agradáveis e outras nem tanto. Algumas dessas coisas ela teria vontade de apertar contra a bochecha, como se fossem gatinhos fofos; já outras ela esconderia, para que sumissem logo da frente dela. Quando você acorda de manhã, todos os desejos de fazer travessuras e maldades estão dobrados bem pequenininhos no fundo da sua cabeça. Na parte de cima, limpos e perfumados, ficam todos os pensamentos mais bonitos, prontos para serem usados. Não sei se você já viu o mapa da mente de uma pessoa. Os médicos às vezes conseguem desenhar partes do corpo — e ver o desenho do seu próprio corpo é muito interessante —, mas tente fazer um médico desenhar o mapa da mente de uma criança e você vai ver como ele fica confuso, fazendo muitas voltas. Você vai ver muitas linhas em ziguezague. Provavelmente essas linhas são as estradas da ilha, pois a Terra do Nunca é mais ou menos uma ilha, com lugares que parecem explodir de cores por todo lado, recifes de corais e barcos prontos para zarpar, com nativos e esconderijos secretos, gnomos que na maioria das vezes são alfaiates, rios que correm por dentro de cavernas, príncipes com seis irmãos mais velhos, uma cabana praticamente caindo aos pedaços e uma velhinha baixinha de nariz pontudo. Se fosse só isso, seria fácil desenhar um mapa da ilha, mas ainda falta o primeiro dia de aula, o catecismo, os pais, o chafariz, a aula de costura, os assassinatos, os enforcamentos, os verbos transitivos

indiretos, o dia do pudim de chocolate, o modo de usar suspensórios, os noventa e nove xelins e três centavos para arrancar seu próprio dente que está mole e por aí vai. Tudo isso é parte da ilha ou está em outro mapa sobreposto. É muito confuso, ainda mais porque nada na ilha fica parado no mesmo lugar. Obviamente que as Terras do Nunca variam muito entre si. Na de John, por exemplo, ele atirava em flamingos que voavam sobre uma lagoa. Já na de Michael, que ainda era bem pequeno, havia um único flamingo, com lagoas voando por cima dele. John morava em um barco virado de cabeça para baixo na areia. A casa de Michael era uma oca pontuda enquanto Wendy possuía uma linda residência de folhas impecavelmente costuradas. John não tinha amigos. Já os de Michael só vinham à noite. Wendy, por sua vez, tinha um lobo que havia sido abandonado pelos pais. Em geral, todas as Terras do Nunca se parecem com os lugares onde vivemos. Se as colocarmos lado a lado, será possível ver a semelhança. Naquelas praias mágicas, as crianças brincam eternamente com seus barquinhos de vime. Nós também já estivemos lá, ainda podemos ouvir o som das ondas, mas nunca mais pisaremos naquelas praias. De todas as ilhas encantadoras que existem, a Terra do Nunca é a mais aconchegante e compacta; ela não é larga e extensa, com distâncias chatas entre uma aventura e outra. Lá, tudo é bem pertinho. Não dá nem um pouco de medo de brincar durante o dia, com todas as cadeiras e toalhas de piquenique, mas dois minutos depois de irmos para a cama a ilha se torna praticamente real. É por isso que existem abajures. Às vezes, em suas viagens pelas mentes das crianças, a senhora Darling se deparava com coisas que não entendia. Entre elas, a mais misteriosa que encontrou foi a palavra “Peter”. Ela nunca tinha ouvido falar de nenhum Peter, mesmo assim esse nome surgia aqui e ali nas mentes de John e Michael. Na de Wendy ele aparecia rabiscado por todos os cantos. Essa palavra se destacava mais do que qualquer outra. Por isso, quando a

senhora Darling a lia, sentia que esse nome tinha um ar estranhamente atrevido. — Sim, ele é bem atrevido — admitiu Wendy, um pouco contrariada. Sua mãe não parava de perguntar: — Mas quem é ele, meu amor? — Você sabe, mamãe. É o Peter Pan. A senhora Darling não sabia. Só depois de ficar pensando sobre sua própria infância é que ela se lembrou de um Peter Pan, que muitos diziam morar com as fadas. Contavam histórias esquisitas sobre ele. Por exemplo, que quando crianças morriam, ele as acompanhava por uma parte do caminho, para que não ficassem com medo. Ainda criança, ela chegou a acreditar na existência dele, mas agora que era uma mulher casada e esclarecida, achava improvável que pudesse existir uma pessoa assim. — Além do mais — explicou para Wendy —, ele já seria um adulto agora. — Não! Ele não é adulto — assegurou Wendy —, ele é do meu tamanho. O que Wendy quis dizer é que eles tinham o mesmo tamanho em termos de mente e de corpo. Ela não sabia como sabia disso, mas era claro para ela. A senhora Darling foi contar ao senhor Darling, que sorriu daquela inocência: — Pode ter certeza — respondeu — que isso é alguma bobagem que a Nana enfiou na cabeça deles. É bem o tipo de ideia que uma cachorra teria. Não se preocupe com isso. Logo passa. Mas não passou. Pouco tempo depois, o tal garoto encrenqueiro deu um belo susto na senhora Darling. Crianças costumam ter aventuras extraordinárias sem perceber. Por exemplo, uma criança pode se lembrar de mencionar, uma semana mais tarde, que havia encontrado seu falecido pai na floresta e brincado com

ele. Foi dessa forma trivial que, uma manhã, Wendy fez uma revelação perturbadora. Apareceram folhas de árvore no chão do quarto das crianças que certamente não estavam lá quando foram dormir. A senhora Darling ficou intrigada, pois Wendy observou com um sorriso complacente: — Deve ter sido o Peter outra vez! — Como assim, Wendy? — É muito feio ele não limpar os pés antes de entrar! — suspirou Wendy. Ela era muito asseada. Wendy explicou, bastante calma e segura, que de vez em quando Peter entrava no quarto à noite e sentava-se à beira da cama para tocar sua flauta. Infelizmente, ela nunca acordava, por isso não sabia dizer como sabia disso, mas estava tudo muito claro para ela. — Isso é bobagem, querida. Ninguém pode entrar em nossa casa sem antes bater à porta. — Eu acho que ele entra pela janela — replicou Wendy. — Meu amor, estamos no terceiro andar. — As folhas não estavam perto da janela, mamãe? Era verdade. As folhas tinham aparecido próximas à janela. A senhora Darling não sabia o que pensar. Tudo parecia tão natural para Wendy que era difícil afirmar que isso não passava de um sonho da menina. — Minha filha, por que você não me contou isso antes? — Eu esqueci — disse Wendy sem dar atenção. Ela estava apressada para tomar seu café da manhã. Ora, sem dúvida ela só poderia ter sonhado. Novamente, ali estavam as folhas. A senhora Darling as examinou com cuidado. Eram apenas esqueletos de folhas secas, mas ela tinha certeza de que não pertenciam a nenhum tipo de árvore da Inglaterra. Saiu engatinhando pelo chão, segurando uma vela em busca das pegadas do invasor. Cutucou a saída da lareira com o atiçador, bateu com a mão nas

paredes, desenrolou uma fita métrica da janela até a calçada e viu que seria uma queda de quase dez metros, sem nenhuma calha ou cano para escalar. Sem dúvida que Wendy só poderia ter sonhado aquilo. Só que Wendy não tinha sonhado, como ficou provado na noite seguinte, quando pode-se dizer que as extraordinárias aventuras daquelas crianças começaram. Nessa noite específica, os três já tinham ido dormir. Por acaso, era a noite de folga de Nana. A senhora Darling havia dado banho e cantado para todos dormirem até que cada um deles soltasse sua mão e deslizasse para o mundo dos sonhos. Pareciam tão seguros e aconchegados que ela sorria ao lembrar do medo bobo que sentira. Sentou-se tranquilamente para costurar em frente à lareira. Estava cosendo uma roupa para Michael, que começaria a usar camisas assim que fizesse aniversário. O fogo estava agradável. No quarto das crianças havia apenas a luz suave de três abajures, e logo a roupa que a senhora Darling costurava caiu sobre o seu colo. Sua cabeça pendeu graciosamente sobre o peito. Caiu no sono. Olhe só para esses quatro. Wendy e Michael lá, John aqui e a senhora Darling em frente à lareira. Deveria haver mais um abajur. A senhora Darling sonhou que a Terra do Nunca tinha se aproximado muito do mundo real e que um menino estranho havia atravessado para o lado de cá. Ela não teve medo dele, pois parecia já ter visto aquele rosto em muitas mulheres sem filhos. Talvez tivesse visto aquele rosto em algumas mães também. Em seu sonho, o menino havia rasgado o véu que esconde a Terra do Nunca. Wendy, John e Michael espiavam pelo buraco aberto por ele. O sonho por si só teria sido apenas uma coisa à toa, mas enquanto a senhora Darling sonhava, a janela do quarto se escancarou. Um menino entrou por ela e caiu rolando pelo chão. Vinha acompanhado por uma luzinha estranha, um pouco menor do que o punho de uma criança, voando feito uma flecha pelo cômodo como se estivesse viva. Acho que foi essa luz que acordou a senhora Darling. Ela gritou ao ver o garoto. No mesmo instante, soube que aquele era Peter Pan. Se eu, você ou Wendy estivéssemos lá, teríamos notado que ele era muito parecido com o beijo da senhora Darling. Era um garoto encantador, coberto com um traje de folhas secas coladas com seiva de árvore, mas o mais fascinante é que ele ainda tinha todos os dentes de leite. Quando percebeu que estava diante de uma adulta, rosnou para ela, deixando à mostra suas pequenas pérolas.

A SOMBRA

A senhora Darling deu um grito e, como se alguém tivesse tocado a campainha, a porta se abriu. Nana entrou, de volta de sua noite de folga. Ao ver Peter, rosnou e avançou sobre ele, que, tranquilamente e sem nenhum esforço, saltou pela janela. A senhora Darling gritou de novo, agora aflita pelo garoto, que poderia morrer na queda. Desesperada, correu até a calçada em busca do pequeno cadáver, mas nada encontrou. Em seguida, olhou para o alto e, no breu da noite, viu algo que ela pensou ser uma estrela cadente. Voltou ao quarto das crianças e viu Nana com algo na boca. Era a sombra do menino. Quando Peter pulou pela janela, Nana a fechou no mesmo instante. Apesar de não tê-lo impedido, ela separou o menino de sua sombra. A senhora Darling examinou a sombra meticulosamente, mas não viu nada de especial nela. Nana não tinha dúvidas sobre o que deveria fazer com a sombra. Pendurou-a na janela, como se quisesse dizer: “Tenho certeza de que ele vai voltar para buscá-la. É só deixar em um lugar onde possa pegá-la sem incomodar as crianças”. No entanto, a senhora Darling não podia deixar a sombra lá, pendurada daquele jeito. Parecia uma roupa secando no varal, o que dava à casa um tom deselegante. Pensou em mostrá-la ao senhor Darling, mas ele estava calculando os custos dos casacos que teria de comprar para John e Michael no inverno. Tinha uma toalha molhada em volta de sua cabeça, para manter a cuca fresca. Seria um pecado atrapalhá-lo. Além disso, ela sabia exatamente o que ele diria: “É nisso que dá ter uma cachorra como babá”. Decidiu enrolar a sombra e guardá-la em uma gaveta. Sua ideia era esperar uma boa oportunidade para contar o caso ao marido. Ai, ai! A oportunidade veio uma semana depois, naquela data fatídica. Obviamente era uma sexta-feira. — Eu deveria ter sido mais cuidadosa; afinal, era uma sexta-feira — a senhora Darling diria ainda muitas vezes, depois, ao seu marido. Em algumas dessas vezes, Nana ficava ao lado dela, com a pata sobre a sua mão. — Não, não! — era o que o senhor Darling sempre respondia. — A culpa disso é toda minha. Eu, George Darling, fui o responsável. Mea culpa, mea culpa. — Ele havia estudado latim no colégio. Repetiam isso noite após noite, relembrando aquela sexta-feira desastrosa, até que cada detalhe ficasse gravado no cérebro deles e dali saísse desordenadamente na forma de uma moeda mal cunhada. — Se ao menos eu não tivesse aceitado o convite dos vizinhos do 27 para jantar — lamentava a senhora Darling. — Se ao menos eu não tivesse jogado meu remédio na tigela da Nana — respondia o senhor Darling. — Se ao menos eu tivesse fingido que gostei do remédio — diziam os olhos marejados da Nana. — É nisso que dá eu gostar tanto de festas, George. — É nisso que dá eu achar que sou comediante, minha querida.

— É nisso que dá eu ser louca com detalhes, meus patrões. E então um ou mais deles caíam no choro. Nana pensava: “É verdade. Eles não deviam ter uma cachorra como babá. Não deviam!”. Muitas vezes o próprio senhor Darling enxugava as lágrimas dela com seu lenço. — Aquele capeta! — o senhor Darling chorava, acompanhado pelos gemidos de Nana. A senhora Darling, no entanto, jamais acusava ou insultava Peter. Havia algo no canto direito de seus lábios que não lhe permitia. Eles se sentavam no quarto das crianças, agora vazio, recordando cada detalhe daquela noite. Começou de forma tão corriqueira, exatamente como centenas de outras noites. Nana esquentava a água para o banho de Michael e o carregava em suas costas. — Não quero dormir! — Michael esbravejava, como se acreditasse ter algum poder de decisão sobre o assunto. — Não vou, não vou! Nana, nem são seis horas ainda! Não, não, não gosto mais de você, Nana. Não vou tomar banho! Não vou, não vou! Nesse momento, a senhora Darling entrou no quarto usando seu vestido branco de festa. Ela havia se arrumado cedo para que Wendy pudesse vê-la. A filha ficava encantada ao ver a mãe usando aquele vestido e o colar, um presente de George. Ela também levava no braço a pulseira de Wendy, que a menina adorava emprestar para a mãe. Encontrou Wendy e John fazendo de conta que eram ela e o senhor Darling na época do nascimento de Wendy. John dizia: — É com alegria que comunico, senhora Darling, que a senhora é mãe — disse em tom muito grave, como talvez o senhor Darling tenha dito na ocasião. Wendy dançava alegremente, da mesma forma que a senhora Darling deve ter dançado. Então foi a vez de John nascer, com ainda mais solenidades, pois era o nascimento de um menino. Michael voltou de seu banho e pediu para

nascer também, mas John respondeu rispidamente que não queriam ter mais nenhum filho. Michael quase chorou. — Ninguém me quer — reclamou, porém, a senhora de vestido de festa não se aguentou. — Eu quero! Quero muito ter três filhos! — Menino ou menina? — Michael perguntou, sem muita esperança. — Menino! Então ele pulou no colo da mãe. Pareciam coisas insignificantes para o senhor e a senhora Darling e Nana ficarem se lembrando agora, mas aquela havia sido a última noite de Michael na casa. Eles continuavam com suas recordações. — Foi nessa hora que eu entrei como um furacão, não foi? — dizia o senhor Darling, arrependido, pois ele havia mesmo entrado feito um furacão. No entanto, não seria justo condená-lo. Ele estava se vestindo para a festa, e tudo ia bem até chegar a hora de pôr a gravata. Parece surpreendente, mas esse homem que tanto entendia de ações e títulos não sabia dar nó em gravatas. Às vezes, ele conseguia como que por mágica; em outras, melhor seria engolir o orgulho e usar uma daquelas gravatas com nó pronto. Aquela vez foi do segundo tipo. Ele chegou agitado ao quarto das crianças com a maldita gravata toda amarrotada na mão. — Qual é o problema, papai? — Problema! — gritou o senhor Darling, gritando de verdade. — É essa gravata, que não se engravata! — disse, ficando perigosamente sarcástico. — Não no meu pescoço! No pé da cama, tudo bem! Consegui dar vinte nós perfeitos no pé da cama, mas imagina se daria certo no meu pescoço? Nunca! Imagine! Ele achou que a senhora Darling não estava levando o problema a sério como deveria e continuou, áspero:

— Estou te avisando, mãe, se eu não conseguir dar o nó nesta gravata, não vamos jantar em lugar nenhum hoje à noite. Se não formos ao jantar, nunca mais apareço no escritório. E se eu não aparecer mais no escritório, eu e você vamos passar fome e nossos filhos vão acabar na sarjeta! Mesmo assim, a senhora Darling continuava calma: — Deixa eu tentar, querido — disse. Era isso o que o senhor Darling queria desde o começo. Com suas mãozinhas macias ela deu o nó na gravata. Tudo sob o olhar atento das crianças, que aguardavam ansiosamente para saber o que seria do futuro delas, afinal. Alguns homens se sentiriam diminuídos por ela ter conseguido tão facilmente, mas o senhor Darling tinha uma natureza mais refinada. Ele a agradeceu calorosamente e esqueceu sua raiva. No minuto seguinte, estava dançando pelo quarto, com Michael em suas costas. — Nossas brincadeiras eram tão alegres! — disse a senhora Darling, recordando-se. — Foi a última vez que brincamos! — o senhor Darling suspirou. — Ai, George, você se lembra de quando Michael me perguntou: “Como você me conheceu, mamãe?”. — Lembro! — Foi muito bonitinho, não foi? — E eles eram nossos. Nossos! E agora se foram. A brincadeira acabou quando, por descuido, o senhor Darling tropeçou em Nana, enchendo sua calça de pelos. Não bastasse a calça ser nova, era a primeira que ele tinha com faixas de cetim dos lados. Até mordeu os lábios para conter as lágrimas. Obviamente, a senhora Darling escovou a calça, mas ele começou a repetir que era um erro ter uma cachorra como babá. — George, a Nana é um tesouro. — Sem dúvida, mas às vezes tenho a sensação de que ela trata as crianças como se fossem seus filhotes.

— Ai, querido, tenho certeza de que ela sabe que eles têm alma. — Não sei, não — o senhor Darling respondeu, pensativo. — Não sei, não. A senhora Darling sentiu que era o momento certo para contar a ele sobre o menino. No início, ele fez pouco-caso da história, mas ficou bem intrigado quando ela mostrou a sombra para ele. — Não é de ninguém que eu conheço — disse, examinando-a cuidadosamente —, mas parece ser de algum malandro. — Ainda estávamos falando sobre a sombra quando Nana chegou com o remédio de Michael, lembra? — disse o senhor Darling. — Agora você não precisa mais dar remédio para ele, Nana, e é tudo minha culpa! Por mais crescido e sério que fosse, sem dúvida havia se comportado como um bobo por conta de um remédio. Se ele tinha uma fraqueza, era achar que nunca havia feito drama para tomar remédios em toda sua vida. Por isso, quando Michael virou o rosto para a colher que Nana trazia na boca, ele desaprovou aquilo severamente, dizendo: — Seja homem, Michael! — Não quero, não quero! — Michael gritou, fazendo manha. A senhora Darling saiu para pegar um chocolate. O senhor Darling, por sua vez, achou que a questão pedia pulso firme: — Mãe, não o mime! — exclamou. — Michael, quando eu tinha a sua idade, eu tomava meus remédios sem dar um pio. Eu dizia: “Obrigado, meus gentis pais, por me darem um remédio para que eu fique melhor”. Em seu íntimo, ele realmente acreditava naquilo, e Wendy, que já estava de camisola, também. Para encorajar Michael, ela complementou: — Aquele remédio que o senhor às vezes precisa tomar tem um gosto muito pior, não é, papai? — Muitíssimo pior! — respondeu altivo o senhor Darling. — E eu o tomaria agora só para dar o exemplo, Michael, se não tivesse perdido o frasco. Ele não havia exatamente perdido seu remédio. Na calada da noite, escalou o guarda-roupa e o escondeu lá em cima. O que ele não sabia era

que a eficiente Liza o havia encontrado e colocado de volta no armário do banheiro. — Eu sei onde está, papai! — exclamou Wendy, sempre feliz em ajudar. — Eu pego para o senhor! — E lá se foi antes que ele pudesse impedi-la. Um desânimo se abateu sobre ele. — John — o senhor Darling disse, sentindo um arrepio —, esse remédio é horrível. É doce, gosmento e nojento. — Num minuto acaba, papai — respondeu John, divertindo-se. Wendy entrou correndo, com o remédio em um copo. — Fiz o mais rápido que consegui — ela disse, sem fôlego. — Obrigado, você foi mesmo muito rápida — seu pai respondeu, com um tom irônico que ela não percebeu. — Primeiro o Michael — sugeriu, tentando se safar. — O papai primeiro — respondeu Michael, que era desconfiado por natureza. — Pode me fazer mal, sabia? — o senhor Darling disse em tom de ameaça. — Vamos, papai! — insistiu John. — Não se meta, John! — respondeu seu pai. Wendy estava intrigada: — Mas papai, achei que o senhor disse que não teria problemas para tomar. — A questão não é essa — replicou o senhor Darling. — O fato é: há mais no meu copo do que na colher de Michael — disse, com o orgulho ferido quase explodindo seu peito. — Não é justo! Digo e repito: isso não é justo. — Papai, estamos esperando — disse Michael, friamente. — Eu sei muito bem disso, porque também estou! — O papai é um covardão. — E você também é um covardão.

— Eu não estou com medo. — E quem disse que eu estou com medo? — Ué, então toma o remédio. — Então tome você também, oras. Wendy teve uma excelente ideia: — Por que os dois não tomam ao mesmo tempo? — Muito bem — disse o senhor Darling. — Pronto, Michael? Wendy contou um, dois, três, e Michael engoliu seu remédio, mas o senhor Darling sorrateiramente escondeu seu copo nas costas. Michael deu um grito de raiva e Wendy exclamou: — Ah, papai! — Como assim, “Ah, papai”? — o senhor Darling perguntou, indignado. — Pare com o berreiro, Michael. Eu queria tomar, mas... errei a pontaria. O modo como os três olhavam para ele era desolador, como se não o admirassem mais: — Escutem aqui, vocês três! — suplicou, assim que Nana saiu para ir ao banheiro. — Acabei de pensar em uma brincadeira ótima. Vou despejar meu remédio na tigela da Nana e ela vai beber achando que é leite! De fato, o remédio tinha cor de leite, mas as crianças não compartilhavam o senso de humor do pai. Olhavam com um ar de reprovação enquanto ele jogava o remédio na tigela. — Vejam como vai ser engraçado! — falou, meio titubeante, mas ninguém teve coragem de denunciá-lo quando a senhora Darling e Nana voltaram. — Nana, minha cachorrinha linda — disse, dando tapinhas na cabeça dela. — Coloquei um pouco de leite na sua tigela. Nana abanou o rabo, correu para o remédio e começou a lamber. Imediatamente, disparou um olhar intenso para o senhor Darling. Não era de raiva, mas uma carinha de cachorro triste, com os olhos caídos, que dá

pena. Depois, ela se arrastou para sua casinha. O senhor Darling ficou completamente envergonhado, mas não se rendeu. Após um silêncio sombrio, a senhora Darling cheirou a tigela: — Ah, George — disse ela —, é o seu remédio. — Foi só uma brincadeira — resmungou, enquanto a senhora Darling consolava os garotos e Wendy abraçava Nana. — Muito bem — disse o senhor Darling amargamente —, é isso o que eu ganho por tentar trazer alegria para esta casa. Mesmo assim, Wendy continuou abraçando Nana. — Isso mesmo! — ele gritou. — Agrade a cachorra! Ninguém me agrada! Imagina só! Não passo de um sujeito que coloca comida nesta casa. Por qual motivo alguém me agradaria? Hein? Hein? — George, não fale tão alto. Os criados podem ouvir — pediu a senhora Darling. Por algum motivo, eles se acostumaram a chamar Liza de “os criados”. — Pois que ouçam! — exclamou senhor Darling, sem se importar. — Que o mundo inteiro ouça! Eu me recuso a deixar essa cachorra mandar na minha casa por um minuto a mais que seja! As crianças começaram a chorar, e Nana correu até o senhor Darling, implorando, mas ele a empurrou de volta. Sentia-se novamente como o homem da casa. — Não adianta, não adianta! — gritou. — Seu lugar é no quintal e eu vou te amarrar lá agora mesmo. — George, George — a senhora Darling sussurrou —, lembre-se do que eu te contei sobre aquele menino. Mas ele não deu atenção. Estava determinado a mostrar a todos quem mandava naquela casa. Como Nana não saía de sua casinha, apesar de suas ordens, ele começou a chamá-la em um tom carinhoso até conseguir atraí-la. Agarrou-a bruscamente e a arrastou para fora. Sentia-se envergonhado pelo que estava fazendo, mas foi até o fim. Fazia aquilo por ser

um sujeito muito sensível, que tinha necessidade de ser admirado. Depois de amarrá-la no quintal, sentou-se no corredor e esfregou os olhos. Enquanto isso, a senhora Darling colocava as crianças na cama e acendia os abajures, em meio a um silêncio incômodo. Ouviram Nana latindo, e John disse, com tristeza: — É porque ele a amarrou no quintal. Wendy, no entanto, entendeu o que se passava: — Esse não é o latido triste dela — disse, sem se dar conta do que estava prestes a acontecer. — Esse é o latido de quando fareja algum perigo. Perigo! — Você tem certeza, Wendy? — Absoluta. A senhora Darling sentiu um calafrio e foi até a janela. Estava bem fechada. Olhou para fora e o céu estava salpicado de estrelas. Todas rodeavam a casa, curiosas para ver o que acontecia lá dentro, mas ela não percebeu isso. Também não notou que uma ou duas das menorzinhas piscaram para ela. Mesmo assim, sentiu um aperto no coração e chorou: — Ai, como eu queria não ter de ir na festa hoje! Até mesmo Michael, que estava quase dormindo, percebeu que sua mãe estava preocupada e perguntou: — Mamãe, alguma coisa pode nos fazer mal quando os abajures estão acesos? — Não, meu amor — a senhora Darling respondeu. — Eles são os olhos que a mamãe deixa no quarto para proteger vocês. Foi de cama em cama cantando canções de ninar. O pequeno Michael a envolveu em seus bracinhos: — Mamãe, que bom que você existe. Foram as últimas palavras dele que ouviria por um longo tempo. O nº 27 ficava a poucas casas de distância, mas, como havia nevado, o senhor e a senhora Darling foram caminhando com cuidado para não sujar os sapatos. Eram as únicas pessoas na rua. As estrelas os observavam. Por mais belas que sejam, as estrelas são incapazes de mudar as coisas; estão condenadas a ser eternas observadoras. É um castigo por algo que elas fizeram há muito tempo. Nenhuma delas lembra mais o que foi. Por isso, as estrelas mais velhas começam a enxergar mal e quase não falam (piscar é a língua das estrelas), mas as mais jovens ainda são curiosas. Elas não gostavam muito do Peter, que tem o péssimo hábito de se esconder atrás delas e apagá-las com um sopro, mas gostam tanto de uma travessura que naquela noite estavam do lado dele, ansiosas para que os adultos sumissem logo. Por isso, assim que o senhor e a senhora Darling fecharam a porta do nº 27, todo o céu se agitou, e a menor das estrelinhas da Via Láctea gritou: — Agora, Peter!

VAMOS LOGO,
VAMOS LOGO!

Mesmo depois que o senhor e a senhora Darling saíram da casa, os três abajures no quarto das crianças continuavam acesos. Eram três lindas luzinhas que fariam qualquer um desejar que as crianças estivessem acordadas para ver Peter chegar. No entanto, o abajur de Wendy piscou, bocejando tão profundamente que os outros dois abajures também bocejaram. Antes de fecharem a boca, os três já tinham se apagado. Havia outra luz no quarto agora, mil vezes mais brilhante do que a dos abajures. Só no tempo de dizer essa frase, a luz já havia passado por todas as gavetas do quarto, vasculhado o guarda-roupas e revirado todos os bolsos possíveis, procurando pela sombra de Peter. Nem era realmente uma luz, mas brilhava desse modo porque se movia muito rapidamente. Se ficasse parada por um segundo, seria possível ver que se tratava de uma fada. Era menor do que a mão de uma criança, mas ainda não tinha parado de crescer. Era uma fada menina chamada Tinker Bell, com um belo vestido feito de esqueletos de folhas, curto e de corte reto, que deixava entrever sua forma meio gorducha. Um segundo após a fadinha entrar, a janela se escancarou, soprada pelas jovens estrelinhas, e Peter entrou num salto. Ele havia carregado Tinker Bell por boa parte do caminho, por isso, sua mão ainda estava coberta de pó de fadas. — Tinker Bell — chamou baixinho, depois de verificar que as crianças estavam dormindo. — Tink, cadê você? Ela estava dentro da moringa, adorando aquela aventura. Nunca havia entrado em uma jarra antes. — Ah, por favor, saia logo dessa moringa e me diga se descobriu onde colocaram minha sombra! Ouviu-se um tilintar muito delicado, como se minúsculos sininhos de ouro tivessem respondido. Era a língua das fadas. Crianças normalmente não conseguem ouvi-la, mas se alguma vez você já ouviu esse som, certamente reconheceria o tilintar. Tink contou que a sombra estava na caixona. Ela se referia à cômoda. Peter então abriu todas as gavetas, espalhando roupas pelo chão, jogando tudo para cima com as duas mãos, como reis que atiram moedas aos seus súditos. Não demorou para ele recuperar sua sombra. Ficou muito contente e não percebeu que havia fechado Tinker Bell dentro de uma gaveta. Acho que Peter pensou — apesar de eu suspeitar que ele não pense quase nunca — que quando encontrasse sua sombra, os dois se juntariam feito gotas de água, automaticamente. Porém, quando isso não ocorreu, ficou muito aflito. Tentou passar o sabonete do banheiro na sombra para ver se ela grudava, mas também não deu certo. Sentiu então um calafrio, sentou-se no chão e começou a chorar.

Seus soluços acordaram Wendy, que se sentou na cama. Não ficou assustada ao ver um garoto estranho chorando no chão do quarto. Só ficou curiosa: — Menino — ela disse gentilmente —, por que você está chorando? Peter sabia como ser educado, pois aprendeu boas maneiras para as cerimônias das fadas. Levantou e fez uma respeitosa reverência. Wendy se sentiu lisonjeada e retribuiu a gentileza com outra bela reverência, sem sair da cama. — Qual é o seu nome? — ele perguntou. — Wendy Moira Angela Darling — respondeu com certo orgulho. — E o seu? — Peter Pan. Ela tinha quase certeza de que ele devia mesmo ser o Peter Pan, mas parecia um nome muito curto em comparação com o dela: — Só isso? — Só! — respondeu, meio irritado. Foi a primeira vez que ele percebeu que tinha um nome muito curto. — Mil desculpas — disse Wendy Moira Angela. — Não tem importância — disse Peter, engolindo o choro. Ela perguntou onde ele morava: — Segunda à direita — respondeu Peter — e depois sempre em frente até amanhecer. — Que endereço mais esquisito! Peter não gostou nada do comentário. Pela primeira vez percebeu que talvez morasse em um endereço esquisito: — Não é! — retrucou. — Eu quis dizer — Wendy falou gentilmente, lembrando-se de que era a anfitriã — se é isso o que se escreve no remetente das suas cartas. Peter preferia que ela não falasse sobre cartas: — Nunca recebo cartas — respondeu, fingindo não se importar.

— Nem da sua mãe? — Não tenho mãe. Ele não só não tinha mãe, como não tinha a menor vontade de ter uma. Achava que as mães eram pessoas superestimadas. Para Wendy, no entanto, aquilo era trágico: — Ah, Peter, então era por isso que você estava chorando — ela disse, saindo da cama e indo até ele. — Eu não estava chorando por causa de mães — retrucou meio indignado. — Estava chorando porque não consigo grudar minha sombra de volta. Aliás, eu nem estava chorando. — Sua sombra se soltou? — Sim. Foi quando Wendy viu a sombra no chão, toda amarrotada, e sentiu muita pena de Peter: — Que horror! — disse, sem conseguir segurar o riso quando viu que Peter tinha tentado colar sua sombra com sabonete. Coisa típica de um menino! Felizmente ela soube na hora o que fazer: — Precisamos cerzir — disse, com certo ar de superioridade. — O que é cerzir? — Você não sabe de nada, mesmo. — Sei sim! Mas ela estava exultante com a ignorância do garoto: — Vou costurar para você, mocinho — disse, embora ambos tivessem a mesma altura. Apanhou a caixa de costura para cerzir a sombra no pé de Peter: — Talvez doa um pouquinho — preveniu. — Ah, não vou chorar, não — respondeu Peter, que a essa altura já acreditava nunca ter chorado na vida. Apertou bem os dentes e de fato não chorou. Logo, sua sombra já se comportava normalmente, embora ainda estivesse um pouco amassada.

— Eu devia ter passado a ferro antes — pensou Wendy em voz alta. Peter, como muitos meninos, não ligava para aparências e já estava pulando para lá e para cá, na maior das alegrias. Em menos de um segundo, já tinha se esquecido de que foi Wendy a responsável por arrumar sua sombra. Aliás, Peter pensava que ele mesmo a havia costurado. — Eu sou muito inteligente! — se gabou, entusiasmado. — Como é bom ser esperto assim! Não é fácil reconhecer que essa presunção de Peter era uma de suas qualidades mais fascinantes. Sendo ainda mais franco, nunca existiu um garoto mais arrogante do que ele. Mas, naquele momento, Wendy ficou chocada: — Seu arrogante! — exclamou. E emendou com sarcasmo: — E eu não fiz nada, claro! — Você ajudou um pouquinho — respondeu, sem parar de dançar. — Um pouquinho! — retrucou indignada. — Já que não sirvo para nada, vou me retirar. Meteu-se na cama de novo, muito afetada, cobrindo a cabeça com o cobertor. Para convencê-la a sair dali, Peter fingiu que ia embora. Quando viu que essa estratégia não havia dado certo, sentou-se na beira da cama e a cutucou de mansinho com o pé. — Wendy, não fique assim — disse. — Fico arrogante quando estou feliz. Não consigo evitar. Ela não se descobriu, mas seguia ouvindo tudo atentamente. — Wendy — continuou, com uma voz que nenhuma menina seria capaz de resistir. — Wendy, uma menina vale por vinte meninos. Agora Wendy se sentia uma mulher em cada centímetro de seu corpo, embora ainda não tivesse tantos centímetros assim. Levantou as cobertas para espiar e perguntou:

— Acha mesmo, Peter? — Acho. — É muito gentil da sua parte dizer isso — declarou. — Vou me levantar de novo. Sentou-se com ele na beira da cama. Disse que lhe daria um beijo se ele quisesse, mas Peter não entendeu o que ela queria dizer com aquilo e estendeu a mão, esperando. — Você não sabe o que é um beijo? — ela perguntou, espantada. — Saberei quando você me der um — respondeu, irritado. Para não ferir seus sentimentos, Wendy colocou um dedal na mão dele: — E agora? Eu também te dou um beijo? Sentindo-se um pouco envergonhada, ela respondeu: — Se você quiser. Para facilitar, Wendy inclinou o rosto em sua direção, mas ele apenas colocou uma bolota de carvalho em sua mão. Ela voltou lentamente à posição em que estava antes e disse, de um modo bem carinhoso, que usaria aquele beijo em seu colar. Por sorte, ela colocou a bolota em seu colar, pois isso salvaria sua vida no futuro. Quando conhecemos novas pessoas, principalmente as crianças, normalmente perguntamos sua idade. Como Wendy sempre gostava de fazer tudo da forma correta, perguntou a Peter quantos anos ele tinha. Não era o tipo de pergunta da qual ele gostava. Era como se dessem a você uma prova de Português depois de você passar muito tempo estudando História: — Não sei — respondeu incomodado —, mas sei que sou bem jovem. Ele realmente não sabia nada sobre isso, era só um palpite. Tentou explicar: — Wendy, eu fugi de casa no dia em que nasci. Wendy ficou, ao mesmo tempo, surpresa e muito interessada. Com suas maneiras refinadas, tocou a ponta de sua camisola, indicando que

Peter poderia se sentar mais perto dela. — Foi porque eu ouvi meus pais conversando — Peter explicou, falando baixinho — sobre o que eu iria ser quando crescesse. De repente, ele ficou muito agitado: — Mas eu não quero crescer nunca! — disse, exaltado. — Quero ser um menino e brincar para sempre. Por isso fugi para Kensington Gardens e vivi muito tempo com as fadas. Wendy o contemplou com profunda admiração. Peter pensou que era em virtude da fuga, mas era por conhecer fadas. Wendy levava uma vida tão monótona que a ideia de conviver com fadas a deixou totalmente maravilhada. Começou a fazer várias perguntas sobre elas, o que Peter achou bem estranho, pois, para ele, as fadas eram uma chateação. Muitas vezes elas o atrapalhavam e ele tinha de afastá-las a tapas. De modo geral, porém, Peter gostava delas e contou a Wendy como tudo começou: — Sabe, Wendy, quando o primeiro bebê riu pela primeira vez, sua risada se estilhaçou em mil caquinhos e eles saíram saltitando por aí. Foi assim que as fadas surgiram. Era uma história meio chata, mas para Wendy tudo era novidade. — Daí — continuou Peter, simpático —, tinha de existir uma fada para cada criança. — Tinha? Não tem mais? — Não. As crianças de hoje sabem tantas coisas que logo deixam de acreditar em fadas. Toda vez que uma criança diz “eu não acredito em fadas”, em algum lugar, uma fada cai morta. Peter achou que já era o suficiente e, de repente, se lembrou que Tinker Bell estava quieta demais: — Não sei onde ela se meteu — disse, levantando-se e chamando Tink. O coração de Wendy estremeceu de emoção: — Peter! — exclamou, agarrando-o. — Quer dizer que tem uma fada aqui no quarto?

— Estava aqui agora mesmo — respondeu, meio impaciente. — Consegue ouvi-la? Ambos ficaram escutando. — A única coisa que eu estou ouvindo — disse Wendy — é um sininho tilintando. — É a Tink. É a língua das fadas. Acho que estou ouvindo também. O som vinha da cômoda. O rosto de Peter se iluminou de alegria. Ninguém tinha uma expressão como aquela. Ele ria de um jeito adorável, parecia o som de um riacho. Seu riso ainda era igual à sua primeira risada de bebê. — Wendy — sussurrou, alegre —, acho que eu a fechei em uma gaveta! E libertou a pobre Tink, que saiu voando pelo quarto praguejando de raiva: — Você não devia dizer coisas assim — reprimiu Peter. — Claro que sinto muito, mas como poderia saber que você estava na gaveta? Wendy nem ouviu o que ele disse: — Ah, Peter, será que ela poderia ficar parada para que eu pudesse vê-la? — Elas quase nunca ficam paradas — explicou, mas por um instante Wendy viu aquela delicada figura pousar sobre o relógio cuco. — Ah, como é linda! — exclamou, embora Tink ainda estivesse com a cara franzida de raiva. — Tink — disse Peter, em um tom amigável —, esta dama disse que gostaria que você fosse a fada dela. Tinker Bell respondeu xingando: — O que ela disse, Peter? Peter traduziu: — Ela não é muito educada. Disse que você é uma menina muito feia e que ela é a minha fada. Só minha. Ele ainda tentou argumentar com Tink:

— Você sabe muito bem que não pode ser minha fada, Tink, pois eu sou um menino e você é uma menina. — Sua mula velha! — foi a resposta da Tink, que sumiu no banheiro. — Ela não é uma fada muito elegante — Peter se desculpou. — Seu nome é Tinker Bell porque ela conserta panelas e chaleiras. Estavam sentados lado a lado no braço da poltrona. Wendy não parava de fazer perguntas: — Então, se você não mora mais em Kensington Gardens... — Às vezes eu moro. — Mas onde você fica na maior parte do tempo? — Com os garotos perdidos. — Quem são eles? — São crianças que caíram dos carrinhos de bebê quando as babás estavam distraídas. Quando não são recuperadas em um prazo de sete dias, são enviadas para a Terra do Nunca, para cortar despesas. Eu sou o capitão delas. — Deve ser muito divertido! — É, sim — respondeu Peter, astuto —, mas somos muito solitários. Sabia que não temos nenhuma companhia feminina? — Não tem nenhuma menina? — Não tem, não. Sabe, as meninas são espertas demais para cair de carrinhos. Aquilo encheu Wendy de orgulho. — Acho muito gentil o modo como você fala das meninas. O John, ali, não nos suporta. A reação de Peter foi se levantar e chutar John para fora da cama, com cobertor e tudo. Wendy achou aquilo uma atitude um tanto extrema para um primeiro encontro e repreendeu Peter energicamente, dizendo que naquela casa ele não era o capitão. John, no entanto, continuou dormindo de forma tão tranquila no chão, que ela achou por bem deixá-lo ali mesmo:

— Sei que no fundo você é bonzinho — disse Wendy, mais calma —, então eu deixo você me dar um beijo. Ela havia esquecido que Peter não sabia nada sobre beijos. — Eu achei mesmo que você fosse pedir de volta — ele disse, meio amuado, e estendeu a mão com o dedal para ela. — Não, me confundi — disse Wendy, carinhosa. — Não quis dizer um beijo, quis dizer um dedal. — O quê? — É assim, eu mostro. — E o beijou. — Que estranho! — disse Peter, muito sério. — Agora também te dou um dedal? — Se você quiser... — respondeu Wendy, sem mover a cabeça desta vez. Peter deu um “dedal” e, quase no mesmo instante, ela deu um gritinho: — O que foi, Wendy? — Foi como se alguém tivesse puxado meu cabelo! — Deve ter sido a Tink. Nunca a vi tão irritada assim. De fato, Tink estava outra vez voando por ali, por todos os lados, tilintando palavrões. — Ela disse que vai fazer isso toda vez que você me der um dedal. — Mas por quê? — Por quê, Tink? A resposta da Tink foi a mesma da outra vez: — Sua mula velha! Peter ficou confuso, mas Wendy entendeu muito bem e se sentiu desapontada quando ele confessou que não tinha vindo até a janela do quarto deles para vê-la, mas para ouvir histórias: — É que eu não conheço nenhuma história. Nenhum dos garotos perdidos conhece histórias. — Que coisa mais triste! — respondeu Wendy.

— Você sabe por que as andorinhas fazem seus ninhos nas calhas das casas? — Peter perguntou. — É para ouvir histórias. Ah, Wendy, sua mãe estava contando uma história tão linda para vocês. — Qual era? — Sobre um príncipe que não conseguia encontrar a moça do sapato de cristal. — Peter! — disse Wendy, empolgada. — Era a Cinderela. No final, o príncipe a encontra e eles vivem felizes para sempre! Peter ficou tão animado que ficou em pé e correu até a janela. — Aonde você vai? — perguntou Wendy, apreensiva. — Contar para os outros garotos! — Não vá ainda, Peter — pediu ela. — Eu conheço muitas outras histórias. Foram exatamente essas as palavras que Wendy disse, para que fique bem claro que foi ela a iniciar a provocação. Peter voltou com uma expressão de cobiça no olhar que deveria ter deixado Wendy alarmada, mas isso não ocorreu. — Ah, quantas histórias eu poderia contar para os garotos! — exclamou ela, e Peter a agarrou e começou a arrastá-la para a janela. — Me solta! — ela ordenou. — Wendy, venha comigo e conte a história para os garotos. Obviamente ela estava lisonjeada com o convite, mas respondeu: — Minha nossa, não posso. Pense na minha mãe! Além disso, não sei voar. — Eu te ensino! — Ah, deve ser uma delícia! — Te ensino a pular no vento e sair voando! — Aaah! — exclamou, maravilhada. — Wendy, Wendy, em vez de ficar dormindo aí nessa sua cama chata, você podia estar voando comigo por aí, contando piadas para as estrelas.

— Aaah! — E também, Wendy, tem as sereias. — Sereias? Com caudas? — Com caudas enormes! — Ah! — exclamou Wendy. — Imagine só ver uma sereia! — Além disso, Wendy — Peter ficava cada vez mais envolvente —, todos iriam te adorar por lá. O corpo de Wendy tremia. Era como se ela fizesse um esforço para manter os pés colados no chão, mas Peter não dava trégua: — Wendy — disse, tentador —, você poderia nos colocar para dormir à noite. — Aaah... — Ninguém nunca nos pôs para dormir. — Aaah! — exclamou, estendendo seus braços para ele. — Você também poderia remendar nossas roupas e fazer bolsinhos novos para nós. Ninguém tem roupas com bolsos por lá. Como ela poderia resistir? — Sem dúvida, isso tudo parece fascinante! — ela exclamou. — Peter, você ensina John e Michael a voar também? — Se você quiser — respondeu Peter com indiferença. Wendy correu para acordar John e Michael: — Acordem! — gritou. — Peter Pan está aqui e vai nos ensinar a voar! John esfregou os olhos: — Nesse caso eu me levanto — disse ele, que já estava no chão. — Ei! Eu já estou levantado! Michael também já havia acordado, mais pronto do que um canivete suíço. Peter fez sinal para que ficassem quietos. Seus rostos ficaram com aquela expressão maliciosa de crianças que querem escutar o que está se passando no mundo dos adultos. Tudo ficou quieto e imóvel. Então chegou o momento certo. Não, espera! Nada estava certo. Nana, que tinha

passado a noite toda latindo contrariada, de repente ficou em silêncio. Era o silêncio dela que eles estavam ouvindo: — Apaguem as luzes! Se escondam! — ordenou John, assumindo o comando pela única vez em toda a aventura. Assim, quando Liza entrou segurando Nana, o quarto parecia o mesmo de todas as noites: bem escuro, aliás dava para jurar que as três crianças dormiam pesado em suas camas. Mas, na verdade, estavam escondidas atrás das cortinas. Liza estava de mau humor, pois preparava os pudins de Natal na cozinha e foi obrigada a eliminar as suspeitas absurdas de Nana. Tinha até uma uva-passa grudada na bochecha. Achou que a melhor forma de ter um pouco de paz seria levar Nana para olhar o quarto, mas bem segura na coleira, claro. — Pronto, bicho desconfiado! — disse, sem se compadecer com o desespero de Nana. — Estão completamente seguros, está vendo? Podemos ouvir os três anjinhos dormindo em suas camas. Ouça como roncam tranquilos. Michael, orgulhoso por sua artimanha estar dando certo, roncou tão alto que quase foram desmascarados. Nana conhecia aquela respiração e tentou se desvencilhar, mas Liza não estava para brincadeiras: — Chega disso, Nana! — exclamou severa, arrastando Nana para fora do quarto. — E fique sabendo que se você latir outra vez, vou direto chamar o patrão e a patroa lá na festa. E aí eu quero só ver se o patrão não vai te dar uma bela surra! Amarrou novamente a pobre cachorra, mas você acha que a Nana parou de latir? Que nada! Podem chamar o patrão e a patroa da festa! Isso era exatamente o que ela queria. Nana não se importava em levar umas palmadas, desde que seus protegidos estivessem seguros. Mas, infelizmente, Liza voltou às suas sobremesas, e Nana, vendo que ninguém viria ajudá-la, esticou tanto a corrente que conseguiu arrebentá-la. Logo

em seguida, invadia a sala de jantar do nº 27, erguendo suas patinhas para o céu, que era o seu jeito mais expressivo de se comunicar. O senhor e a senhora Darling entenderam na hora que algo terrível se passava com as crianças. Sem se despedirem, saíram em disparada pela rua. Porém, já haviam se passado dez minutos desde a simulação dos três malandrinhos no quarto, e Peter era capaz de fazer maravilhas em dez minutos. Voltemos ao quarto das crianças: — Deu certo! — John anunciou, saindo de seu esconderijo. — Diga, Peter, você sabe mesmo voar? Ao invés de responder, Peter voou pelo quarto e derrubou a estante sobre a lareira. — Isso é demais! — disseram John e Michael. — Que lindo! — exclamou Wendy. — Pois é, eu sou lindo. Eu sou muito lindo! — tornou Peter, esquecendo-se outra vez da modéstia. Parecia incrivelmente fácil, e todos quiseram tentar. Primeiro pularam no chão e depois em cima da cama, mas sempre caíam em vez de subirem: — Me diga! Como você faz? — perguntou John, esfregando seu joelho dolorido. Ele era um menino muito pragmático. — Basta ter pensamentos felizes — explicou Peter —, são eles que nos erguem no ar. E demonstrou novamente. — Você vai muito rápido — disse John. — Pode fazer devagarzinho uma vez? Peter fez devagar e depois rápido. — Agora peguei o jeito, Wendy! — gritou John, mas logo viu que estava enganado. Nenhum deles conseguia voar um centímetro sequer, mesmo com Michael já sabendo ler palavras de duas sílabas enquanto Peter não conhecia nem o abecedário.

Peter estava pregando uma peça neles, pois ninguém pode voar sem ser borrifado com uma pitada de pó de fadas. Por sorte, como já vimos, uma das mãos dele estava cheia desse pó. Peter soprou um pouco em cada um deles e o resultado foi fantástico: — Agora é só mexer os ombros desse jeito — mostrou Peter — e sair voando! Estavam todos em suas camas, e o valente Michael foi o primeiro a tentar. Não se sentia muito seguro para se soltar, mas arriscou assim mesmo e imediatamente voou para o outro lado do quarto. — Eu voei! — exclamou, ainda pairando no ar. John se atirou em seguida e esbarrou em Wendy no ar, perto do banheiro. — Que delícia! — Formidável! — Olha só para mim! Não chegavam nem aos pés da elegância de Peter, e era difícil parar de espernear. A cabeça deles ficava batendo no teto. Essa é uma das sensações mais incríveis que se pode experimentar. No começo, Peter deu a mão a Wendy, mas teve que soltar porque Tink ficou indignada. Voaram para cima, para baixo e depois em círculos. Wendy dizia o tempo todo que aquilo era celestial: — Que tal se a gente fosse voar lá fora? — sugeriu John. Era exatamente isso o que Peter queria. Michael já estava pronto. Queria ver quanto tempo levaria para voar um bilhão de quilômetros, mas Wendy hesitou: — Sereias! — repetiu Peter. — Aaah! — E tem os piratas também! — Piratas! — exclamou John, apanhando seu chapéu de domingo. — Vamos logo de uma vez!

Foi só então que o senhor e a senhora Darling saíram correndo do nº 27, atrás de Nana. Pararam no meio da rua olhando para cima para avistar a janela do quarto das crianças. Sim, ainda estava fechada, mas dava para ver o quarto inundado de luz. O mais apavorante, no entanto, foi ver através da cortina três silhuetas se movendo em círculos, não no chão, mas no ar. Três silhuetas não, quatro! Abriram a porta de supetão. O senhor Darling queria subir as escadas correndo, mas a senhora Darling fez sinal para que ele fosse mais devagar. Ela tentava fazer o mesmo com seu próprio coração. Será que chegarão a tempo no quarto? Se sim, será muito bom, e poderemos dar um suspiro de alívio... mas aí não haveria história alguma a ser contada. Por outro lado, se não chegarem a tempo, juro solenemente que tudo terminará bem. Teriam chegado se não fosse pelas estrelinhas bisbilhoteiras. Mais uma vez, elas sopraram para escancarar a janela, e a menorzinha avisou: — Cuidado, Peter! Peter sabia que não havia mais um segundo a perder. — Vamos! — ordenou ao voar como um foguete noite afora, seguido por John, Michael e Wendy. O senhor e a senhora Darling, acompanhados de Nana, invadiram o quarto tarde demais. Os passarinhos tinham fugido da gaiola.

O VOO

Segunda à direita, sempre em frente até o amanhecer. Esse era o caminho para chegar à Terra do Nunca, como Peter havia explicado a Wendy. Porém, nem mesmo passarinhos com mapas, pedindo informações nas esquinas do vento, conseguiriam chegar seguindo tais instruções. A verdade é que Peter simplesmente disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça. A princípio, seus acompanhantes confiavam nele cegamente. Voar era tão gostoso que passaram muito tempo circulando torres de igrejas e outros prédios interessantes que acharam pelo caminho. John e Michael apostaram corridas. Michael saía um pouquinho na frente todas as vezes. Lembraram-se agora, com certo desprezo, de que até pouco tempo atrás acreditavam que voar dentro de um quarto era uma coisa grandiosa. Até pouco tempo atrás... mas quanto? Já estavam sobrevoando o mar quando Wendy começou a se preocupar com isso. Na cabeça de John, já era o segundo mar da terceira noite. Às vezes, ficavam no meio da escuridão, depois clareava. Uma hora, sentiam frio; depois, calor. Em seguida, ficavam com fome, ou apenas fingiam, porque Peter tinha um jeito novo e divertido de alimentá-los. Ele perseguia pássaros que traziam comida na boca, coisas boas que pessoas poderiam comer, e as tirava deles. Então os pássaros passavam a perseguir Peter para roubar a comida de volta, e assim iam brincando, um perseguindo o outro por quilômetros, até se separarem com expressões de afeição depois de se divertirem tanto. Wendy notou, com um leve tom de preocupação, que Peter não percebia que aquele era um modo bem estranho de fazer as refeições, nem que haviam outros meios possíveis. Quando o assunto era o sono, não havia fingimento. Todos estavam cansados de verdade. E isso era um perigo, pois no momento em que começavam a cochilar, despencavam. O pior de tudo era que Peter achava isso engraçado: — Lá vai ele outra vez! — Peter exclamava alegremente quando Michael de repente caía feito uma pedra. — Pegue-o! Pegue-o! — gritava Wendy, olhando apavorada o mar cruel lá embaixo. Peter sempre acabava mergulhando para apanhar Michael, pouco antes do menino bater na água. Fazia isso de maneira admirável. No entanto, esperava até o último segundo. Dava para perceber que ele estava interessado mesmo em se mostrar, não em salvar uma vida. Além disso, Peter enjoava logo das coisas. Em um momento, uma brincadeira o deixava animado. Em seguida, perdia o interesse. Por isso, sempre havia a possibilidade de que, na próxima vez que alguém caísse, talvez ele deixasse a pessoa se espatifar. Peter era capaz de dormir no ar sem cair. Simplesmente se deitava de costas e flutuava, mas isso acontecia em parte porque era tão leve que se alguém chegasse atrás dele e o soprasse, voaria ainda mais rápido.

— Seja mais educado com ele — Wendy sussurrou para John, quando estavam brincando de “siga o líder”. — Então diga pra ele deixar de ser exibido! — retrucou John. Quando brincava de seguir o líder, Peter voava muito rente à água e tocava todas as nadadeiras de tubarões que via pelo caminho — do mesmo modo quando passamos os dedos pelas grades ao andar na calçada. Era impossível acompanhá-lo, por isso parecia mesmo que ele estava se exibindo, principalmente porque ficava olhando para trás, contando quantas nadadeiras os outros deixavam passar. — Sejam legais com ele — Wendy repreendia seus irmãos. — O que seria de nós se ele nos largasse aqui? — A gente voltaria — respondeu Michael. — E como é que a gente encontraria o caminho de volta sem ele? — Bom, então a gente continuaria — emendou John. — Aí é que está, John. A gente teria que continuar, porque nem sabemos como parar. Era verdade, pois Peter tinha esquecido de ensinar a eles como parar. John disse que, no pior dos cenários, bastaria continuar voando em linha reta, pois já que o mundo é redondo, alguma hora passariam novamente pela janela do quarto. — E quem pegaria comida para nós, John? — Pois eu roubei um pedaço de comida do bico daquela águia sem muito esforço, Wendy. — Depois de tentar vinte vezes — Wendy o lembrou. — Mesmo se ficássemos bons em pegar comida, veja como ainda trombamos nas nuvens e outras coisas quando ele não está por perto para ajudar. De fato, estavam constantemente trombando nas coisas. Eram capazes de voar melhor, embora ainda esperneassem bastante. Quando avistavam uma nuvem adiante, qualquer tentativa de desvio os levava direto para ela. Se Nana estivesse ali, já teria enrolado uma atadura na cabeça de Michael.

Peter não estava junto deles nesse momento. Todos se sentiram bastante solitários lá em cima. Ele conseguia voar muito mais rápido e, às vezes, disparava até sumir de vista, em outra aventura da qual não conseguiam participar. Depois voltava rindo de algo muito engraçado que havia dito a uma estrela, mas aí ele já tinha esquecido o que era; ou então subia com escamas de sereia grudadas no corpo e também não sabia dizer exatamente o que havia acontecido. Era algo bem irritante para crianças que nunca tinham visto uma sereia na vida. — Se ele se esquece delas tão rápido — ponderou Wendy —, como esperar que não se esqueça de nós? Realmente, em algumas dessas vezes, Peter retornava e não se lembrava mais das crianças. Pelo menos não muito bem. Wendy tinha certeza disso. Em uma ocasião, Peter passou por eles, deu bom-dia e já ia seguindo adiante sem reconhecê-los. Wendy percebeu pelo seu olhar. Ela inclusive teve de chamá-lo pelo nome: — Peter, sou eu, a Wendy! — disse, aflita. Peter ficava muito chateado. — Olha, Wendy — sussurrou para ela —, sempre que perceber que estou me esquecendo de você, basta dizer: “Sou eu, a Wendy”. Prometo que eu vou me lembrar. Isso era bem desagradável, obviamente. Para tentar compensar, Peter mostrou a todos como planar nas correntes de vento contrário. A novidade era tão diferente do modo como vinham voando, que experimentaram várias vezes e descobriram que assim podiam dormir com segurança. Teriam até dormido por mais tempo, mas Peter não tinha muita paciência para dormir e logo deu seu comando de capitão: — Vamos atracar aqui. Assim, entre rusgas e percalços, mas sempre com muita diversão, já estavam perto da Terra do Nunca. Chegaram lá depois de passarem por muitas luas. O mais interessante foi terem voado sempre em frente desde

que saíram, sem muita ajuda de Peter ou Tink — talvez isso tenha acontecido porque a Terra do Nunca também queria encontrá-los. É desse jeito que uma criança consegue chegar às praias encantadas. — Ali está — falou Peter, calmamente. — Onde? Onde? — Ali, para onde todas as setas apontam. De fato, milhares de setas douradas indicavam o destino, todas guiadas pelo sol, que não arriscaria permitir que errassem o caminho antes de trocar seu lugar com a noite. Wendy, John e Michael ficaram na ponta dos pés, em pleno ar, quando avistaram a ilha pela primeira vez. Parece estranho dizer isso, mas todos a reconheceram de imediato e, antes de serem tomados pelo medo, deram vivas, comemorando a chegada. O sentimento não era o de finalmente realizar um sonho; parecia mais como reencontrar um amigo querido depois de longas férias. — John, olha a enseada ali! — Wendy, veja as tartarugas enterrando ovos na areia! — John, está vendo lá o seu flamingo de perna quebrada? — Olha, Michael, a sua caverna! — John, o que é aquilo no bosque? — É uma loba com filhotes. Wendy, acho que um deles é o seu. — Olha lá o meu barco, John, com o casco esburacado. — Não é ele, não. A gente botou fogo no seu barco. — Mas é ele, sim. Veja, John, a fumaça no acampamento dos peles- -vermelhas! — Onde? Deixa eu ver. Sei dizer pelo formato da fumaça se eles estão em guerra ou não. — Ali, na outra margem do Rio Misterioso. — Ah, estou vendo. É, eles estão em guerra. Peter estava um pouco irritado por saberem tanto, mas se ele quisesse

mostrar mesmo quem mandava ali, a chance estava próxima. Afinal, eu não disse que logo estariam em perigo? Tudo ocorreu tão rápido quanto o sumiço das setas, mergulhando a ilha na escuridão. Antigamente, em casa, a Terra do Nunca sempre começava a ficar mais sombria e ameaçadora perto da hora de dormir. Trilhas desconhecidas surgiam e se espalhavam, sombras negras se moviam por elas, o rugido dos predadores selvagens ficava diferente, e, pior ainda, não se tinha mais certeza se era possível escapar dali vivo. Era um alívio ter os abajures acesos e um prazer ver Nana indicando que era só a sombra da prateleira. A Terra do Nunca não passava de faz de conta. Agora era tudo real. Não havia abajures. A escuridão ficava mais densa a cada segundo e... onde estaria Nana? Voavam distantes uns dos outros, mas sempre seguindo Peter. Seu jeito despreocupado finalmente havia desaparecido, seus olhos brilhavam, e cada vez que um deles tocava seu corpo, sentia um pequeno choque. Sobrevoavam a tenebrosa ilha tão baixo que às vezes roçavam o pé na copa de alguma árvore. Não viam nada de perigoso no ar, mas mesmo assim avançavam devagar e com cuidado, como se abrissem caminho em território inimigo. Às vezes ficavam parados até Peter dar um sinal com seus punhos cerrados. — Não querem que a gente pouse — explicou Peter. — Quem não quer? — Wendy sussurrou, tremendo de medo. Peter não sabia ou não queria dizer. Tinker Bell, que ainda havia pouco dormia em seu ombro, agora estava bem acordada. Peter a mandou seguir na frente. De quando em quando, ele parava no ar, ouvindo atentamente com a mão em concha na orelha. Então, olhava para baixo, com olhos tão arregalados e brilhantes que pareciam querer abrir dois buracos no chão. Depois seguia em frente.

Sua coragem era impressionante. — Gostariam de uma aventura agora ou preferem tomar chá primeiro? — perguntou despreocupadamente a John. — Chá primeiro — disse Wendy, sem pestanejar. Michael apertou sua mão, agradecendo, mas o valente John hesitou. — Que tipo de aventura? — perguntou, cauteloso. — Tem um pirata dormindo na planície bem aqui abaixo — contou Peter. — Se quiser, podemos descer e matá-lo. — Não estou vendo ninguém — falou John, após uma longa pausa. — Eu estou. — Vamos supor…. que ele acabe acordando? — disse John com a voz sumindo. Peter ficou indignado: — Quer dizer que você mataria alguém dormindo? Eu acordo ele primeiro, depois mato. É assim que sempre faço. — Peraí. Você já matou muitos piratas? — Perdi a conta. — Que legal! — comentou John, mas decidiu tomar o chá primeiro. Perguntou quantos piratas havia na ilha, mas Peter disse que nunca soube o número exato. — E quem é o capitão deles? — Hook — respondeu Peter, fazendo uma cara séria ao dizer aquela palavra odiosa. — Jas3 Hook? — Ele mesmo. Michael começou a chorar e a voz de John ficou embargada, pois conheciam a fama do gancho.

— Ele foi o imediato do Barba Negra4 — cochichou John. — Era o pior de todos, o único pirata de quem o Churrasqueiro5 tinha medo. — É ele mesmo. — E como ele é? Muito grande? — Não tanto quanto antigamente. — Como assim? — Eu cortei um pedaço dele fora. — Você? — Eu mesmo, por quê? — Peter retrucou rispidamente. — Não quis ofender. — Ah, então tudo bem. — Mas me diga, qual pedaço? — A mão direita. — Então ele não consegue mais brigar? — Claro que consegue. — Só com a canhota? — Ele colocou um gancho de ferro no lugar na mão direita, como se fosse uma garra. — Uma garra! — Sabe, John? — disse Peter. — O quê? — Você deve dizer: “Sim, meu capitão”. — Sim, meu capitão. — Tem mais uma coisa — continuou Peter. — Todo garoto sob meu comando deve fazer um juramento, inclusive você.

John ficou pálido. — Se acontecer de um dia lutarmos com o Gancho, lembre-se sempre de que ele é meu. — Tudo bem. Prometido — declarou John. A essa altura já não estavam com tanto medo, pois Tink voava à frente e sua luz distinguia uns dos outros. Infelizmente, ela não ia tão devagar quanto eles e voava em círculos, produzindo um halo em volta do grupo. Wendy gostava daquilo, mas Peter explicou o lado ruim da coisa: — Tink me disse que os piratas nos avistaram antes do anoitecer e prepararam o Tonhão para nós. — Você quer dizer o canhão? — Isso. E sem dúvida conseguem ver a luz dela. Se acharem que estamos perto, vão mandar chumbo! — Wendy! — John! — Michael! — Manda ela sumir daqui, Peter! — gritaram os três ao mesmo tempo, mas Peter se recusou. — Ela acha que estamos perdidos — respondeu, preocupado. — Está muito assustada. Eu jamais a mandaria embora assustada assim. O círculo de luz se desfez por um momento e Peter sentiu um beliscãozinho carinhoso. — Então fala pra ela apagar a luz — implorou Wendy. — Ela não consegue apagar. Acho que é a única coisa que as fadas não conseguem. A luz só se apaga quando ela dorme, igual às estrelas. — Então fala para ela dormir já! — John disse, quase como uma ordem. — Ela não dorme se não estiver com sono. É a única outra coisa que as fadas não conseguem fazer. — Parece — resmungou John — que são as duas únicas coisas que nos ajudariam agora.

Também levou um beliscão, mas não foi nada carinhoso dessa vez. — Se ao menos alguém tivesse um bolso — Peter disse —, poderíamos levá-la escondida. Infelizmente, saíram com tanta pressa de casa que nenhum deles tinha bolso. Peter então teve uma boa ideia: — O chapéu do John! Tink concordou em ficar dentro do chapéu, desde que alguém o levasse na mão, e não na cabeça. John o levou, embora ela esperasse que fosse Peter. Logo depois, Wendy passou a carregá-lo porque John reclamou que ficava batendo em sua perna enquanto voava. Como veremos, essa ideia teve resultados desastrosos, pois Tinker Bell odiou se sentir em dívida com Wendy. A luz de Tink ficava completamente oculta dentro da cartolinha preta. Eles então seguiram voando sem dizer nada. Era o silêncio mais profundo que já tinham sentido, quebrado somente por um ruído longínquo que Peter explicou ser dos animais bebendo água no riacho. Depois, veio um som estridente que poderia ser o de galhos de árvore roçando uns nos outros, mas ele disse que eram os peles-vermelhas afiando suas facas. Até mesmo esses ruídos cessaram. Para Michael, a sensação de solidão era insuportável: — Queria que alguma coisa fizesse barulho! Atendendo ao pedido, o ar foi rasgado pela maior explosão que ele já ouvira. Os piratas dispararam o Tonhão contra eles. O rugido ecoou pelas montanhas e o eco parecia gritar desesperado: — Cadê eles? Cadê eles? Foi assim que os três irmãos aterrorizados aprenderam a diferença entre uma ilha de faz de conta e essa mesma ilha se tornando realidade. Quando finalmente o céu se acalmou, John e Michael se viram sozinhos no escuro. John marchava no ar e Michael flutuava, mesmo sem

saber como fazia isso. — O tiro acertou você? — sussurrou John, trêmulo. — Ainda não conferi — Michael respondeu. Sabemos agora que ninguém tinha se ferido. Peter, no entanto, acabou arrastado pela lufada de ar até o mar. Wendy foi jogada para o alto, sozinha com Tinker Bell. Teria sido melhor para Wendy se ela tivesse deixado o chapéu cair nessa hora. Não sei se Tink teve a ideia de repente ou se já vinha planejando no caminho. Acontece que ela saiu do chapéu, voou e colocou em prática uma terrível emboscada para Wendy. Tinker Bell não era totalmente má. Acontece que ela só estava completamente má naquele momento. Em outras ocasiões, era completamente boa. Fadas precisam decidir entre uma coisa ou outra, pois são tão pequenas que só têm espaço para um sentimento de cada vez. Ainda bem que elas podem alternar — desde que seja uma mudança completa. Agora, Tink estava tomada de ciúmes de Wendy, que não entendia o que a fada dizia em seu adorável tilintar — devem ter sido palavrões terríveis, mas soavam como algo gentil. Tink voava para a frente e para trás querendo dizer: — Venha comigo que tudo vai ficar bem! O que mais a pobre Wendy poderia fazer? Ela chamava por Peter, John e Michael, mas só ouvia o eco em resposta. Ela ainda não sabia que Tinker Bell era capaz de odiar tanto. Foi por isso que, desnorteada e cambaleante, seguiu Tink rumo à sua própria ruína.

A ILHA SE TORNA
REALIDADE

Ao sentir o retorno de Peter, a Terra do Nunca acordava cheia de vida. Sabemos que seria melhor usar o pretérito perfeito “acordou”, mas o pretérito imperfeito “acordava” era melhor. Principalmente porque Peter sempre falava desse jeito. Em sua ausência, normalmente as coisas ficavam mais calmas na ilha. As fadas dormiam uma hora a mais pela manhã, os animais cuidavam dos filhotes, os peles-vermelhas comiam fartamente por seis dias e noites e quando os piratas e os garotos perdidos se encontravam apenas faziam caretas e sinais ofensivos uns para os outros. Com a chegada de Peter, que detesta tranquilidade, tudo voltava a ser como antes: se você colocasse seu ouvido no chão agora, poderia ouvir a ilha toda fervilhando de agitação. Nessa noite, as principais forças estavam distribuídas da seguinte maneira: os garotos perdidos procuravam por Peter; os piratas procuravam pelos garotos perdidos; os peles-vermelhas procuravam pelos piratas; e os animais procuravam pelos peles-vermelhas. Todos andavam em círculos pela ilha, sem descanso, e não se encontravam porque caminhavam exatamente na mesma velocidade. Todos queriam sangue, exceto os garotos — que normalmente também gostam de sangue, mas nessa noite tinham saído apenas para saudar seu capitão. O número de garotos na ilha varia, é claro, conforme eles vão morrendo. Quando algum deles parecia estar crescendo, o que é contra as regras, Peter o dispensava imediatamente. Eram seis no total, se contarmos os gêmeos como dois. Agora, vamos fazer de conta que estamos ali, no meio do canavial, observando enquanto passam em fila, cada um com seu punhal na mão. Peter proibia que alguém ficasse parecido com ele, mesmo que só um pouco. Os garotos então, para evitar problemas, vestiam-se com a pele dos ursos que eles mesmos caçavam. Essas roupas os deixavam tão arredondados e fofos que, quando caíam, acabavam rolando pelo chão. Por isso aprenderam a dar passos firmes. O primeiro deles é Piuí: não era o mais covarde, mas sim o mais azarado desse bando valente. Ele participou de menos aventuras do que os demais porque as coisas mais importantes sempre acontecem quando ele se afasta do grupo. Quando tudo parece calmo, ele aproveita para pegar lenha, e ao voltar os outros já estão limpando o sangue de suas roupas e armas. Essa má sorte marcou seu semblante com uma suave melancolia, mas em vez de se tornar amargo, ele se tornara gentil e humilde, era o mais modesto dos garotos. Pobre e gentil Piuí, o perigo paira sobre você esta noite. Tenha cuidado, pois se você aceitar a aventura que o destino oferece, poderá sofrer um grande desgosto. A fada Tink, Piuí, está com más intenções e só precisa de um tolo para seu plano. Ela acha que, de todos, você é o mais fácil de enganar. Cuidado com ela! Quem dera Piuí pudesse nos ouvir, mas não estamos de verdade na ilha, e ele passa roendo as unhas.

Em seguida vem Espeto, alegre e galante, seguido por Fiapo, que corta galhos para fazer flautas e dança animado ao som de sua própria música. Fiapo é o mais convencido dos garotos. Ele diz que se lembra de como era antes de estar perdido. Tem seus gestos próprios, suas manias e anda sempre de nariz empinado. Caracol é o próximo. Sempre metido em encrenca, já foi obrigado a se entregar muitas vezes. Nessas horas, Peter diz, furioso: “Quem fez isso, dê um passo à frente!”. Foram tantas vezes que isso aconteceu que agora, ao ouvir essa ordem, Caracol já se adianta automaticamente, seja ele culpado ou não. Por último vêm os gêmeos, que ninguém consegue diferenciar. Quem tenta sempre acaba escolhendo o gêmeo errado. Peter nunca tem certeza qual é qual e como em seu bando é proibido saber algo que ele desconheça, os gêmeos são vagos quando falam de si mesmos. Preferem andar juntinhos, com cara de quem está sempre se desculpando. Os garotos desaparecem na escuridão. Após uma pausa não muito longa — pois nada na ilha demora muito —, passam os piratas em seu encalço. Conseguimos ouvi-los antes de vê-los, pois sempre cantam a mesma canção terrível: — Segurar, amarrar, içar! Arrá! Piratas são eternos! Mesmo tomando tiro. Pá, pá! Nos vemos no inferno! Nem na fila dos condenados à forca se vê um bando tão mal-encarado. À frente, como sempre, está o italiano bonitão Cecco, com seus grandes braços à mostra e dobrões pendurados como se fossem brincos. Certa vez, ele escreveu seu nome com uma faca, em letras de sangue, nas costas do diretor da prisão em Gao. O gigantesco homem negro atrás dele já foi chamado de muitas coisas depois de abandonar o nome que algumas mães ainda usam para aterrorizar seus filhos nas praias de Guadjo-mo. Vil Bill

tem cada centímetro de seu corpo tatuado. É o mesmo Vil Bill que levou mais de setenta chibatadas do capitão Flint, a bordo do Walrus 6 , antes de soltar o saco de moedas portuguesas que segurava. Depois, vêm Cookson, que dizem ser irmão de Black Murphy (o que nunca foi comprovado); Starkey Cortês, que já foi inspetor de escola e ainda mata com certa delicadeza; Claraboia (que foi da tripulação do capitão Morgan); o imediato irlandês Rolha, um homem estranhamente gentil que quando ataca parece não querer ofender — o único religioso da tripulação de Hook; Macarrão, cujas mãos são viradas para trás; Robert Mullins, Alf Mason e muitos outros rufiões conhecidos e temidos nas possessões espanholas. Em meio a eles, o maior e mais sombrio é James Hook, ou, como ele próprio assinava: Jas Hook. Segundo dizem, é o único homem a quem Long John Silver7 temia. Vinha deitado confortavelmente sobre uma rústica carruagem puxada por seus homens. No lugar da mão direita apresentava um gancho de ferro com o qual espicaçava seus lacaios para que apressassem o passo. Ele os tratava como cães e, como tais, eles obedeciam. Suas feições cadavéricas, a pele escura, os longos cachos de cabelo que pareciam velas negras ao longe davam uma expressão ameaçadora aos seus belos traços. Olhos azuis como a flor miosótis e de uma profunda melancolia — exceto quando crava seu gancho em alguém — são acesos por dois pontos vermelhos em suas pupilas, que se iluminam com um brilho medonho enquanto ele dilacera seus inimigos com certo ar refinado, como se fosse um aristocrata da morte. Eu também soube que ele era um exímio contador de histórias. Quanto mais educado, mais sinistro se parecia, o que talvez seja a prova irrefutável de sua sofisticada criação. Articulava as palavras de

maneira elegante mesmo quando praguejava, mantendo a distinção. Tudo nele denunciava ser de uma estirpe diferente da de sua tripulação. Homem de coragem indomável, dizia-se que a única coisa que o fazia recuar era a visão de seu próprio sangue, espesso e de cor incomum. Sempre se vestia, tanto quanto podia, como o rei Charles II, pois no começo de sua carreira alguém havia dito que ele possuía uma estranha semelhança com os malfadados Stuarts8 . Em sua boca levava uma piteira, feita por ele mesmo, com a qual podia fumar dois charutos simultaneamente. Mas sua parte mais horripilante era, sem dúvida, a garra de ferro. Agora, vamos matar um pirata para demonstrar os métodos utilizados por Hook. Pode ser o Claraboia. Conforme os piratas passam, o desajeitado Claraboia tromba em Hook, desalinhando o colarinho de renda do terrível comandante. A resposta do cruel bucaneiro ao encontrão é desferir um golpe mortal contra seu subordinado. Ouve-se então o som de seu gancho rasgando a carne de Claraboia, que agoniza em meio a um grito agudo. Sem nenhuma inquietação, o corpo já sem vida do marujo é chutado para o lado por Hook e os piratas seguem. O capitão sequer tira os charutos da boca. Esse é o terrível homem que Peter Pan quer enfrentar. Qual dos dois vencerá? No encalço dos piratas, pisando sem ruído pelo caminho da batalha, que é invisível a olhos inexperientes, surgem os peles-vermelhas, todos de olhos arregalados. Trazem machados e facas. Seus corpos nus brilham, cobertos de tinta e óleo. Levam escalpos amarrados em volta do corpo, tanto de garotos como de piratas, pois essa é a tribo Piccaninny — que não deve ser confundida com as tribos Delaware ou Huron, de

coração mais mole. À frente, engatinhando, vem o Grandioso Grande Panterinha, um índio valente que caminha com dificuldade em razão da quantidade de escalpos que carrega. Na retaguarda, posição mais arriscada, vem Lily Tigre, de porte altivo, com ares de princesa. Ela é a mais bela das amazonas, deusas da floresta. É a beldade dos Piccaninnies, provocante, fria e carinhosa, cada qual a seu tempo. Não há um selvagem que não gostaria de ter essa mocinha caprichosa como esposa, mas ela afasta qualquer pretendente com sua machadinha. Observe como eles passam sobre galhos caídos sem fazer o menor ruído. O único som que se ouve é o de suas respirações pesadas. A verdade é que estão todos um pouco acima do peso agora, depois de dias se empanturrando, mas logo voltarão à velha forma. No entanto, nesse momento, o sobrepeso constitui um perigo ao chefe da tribo. Os peles-vermelhas desaparecem do mesmo modo como chegaram: feito sombras. Seu lugar logo é tomado pelas feras, em uma procissão grandiosa e diversa: leões, tigres, ursos e outros incontáveis animais menores que fogem quando esse bando se aproxima, pois são várias espécies juntas, muitas delas comedoras de gente. Passam com as línguas de fora, famintos sob o luar. Depois das feras, eis que chega a última figura, um gigantesco crocodilo. Em breve veremos por quem ele procura. O crocodilo se vai e logo os garotos aparecem outra vez, pois a procissão continua indefinidamente, até que alguma das partes pare ou mude seu ritmo. Se isso acontecer, todos acabarão se atracando em questão de minutos. Eles mantêm os olhos atentos à frente, pois nenhum suspeita que o perigo pode vir sorrateiramente por trás. Isso mostra o quanto a ilha é perigosa. Os primeiros a deixar essa ciranda são os garotos. Eles se atiram no gramado próximo de sua casa subterrânea.

— Queria que Peter voltasse — dizem ansiosos, mesmo todos sendo mais altos e, principalmente, mais fortes do que seu capitão. — Sou o único que não tem medo dos piratas... — disse Fiapo, usando o tom de voz que os outros não gostavam. Talvez algum ruído distante o tenha perturbado, pois acrescentou rapidamente: — ... mas eu queria que ele voltasse e nos contasse se descobriu algo mais sobre a Cinderela. Conversavam sobre a Cinderela. Piuí tinha certeza de que sua mãe era muito parecida com ela. Os meninos falavam sobre as suas mães apenas na ausência de Peter, para quem o assunto era proibido e tolo. — A única coisa de que me lembro da minha mãe — contou Espeto — é que ela sempre dizia ao meu pai: “Ah, como eu queria um talão de cheques só pra mim!”. Não sei o que é um talão de cheques, mas queria muito dar um pra ela. Enquanto falavam, ouviram um ruído ao longe. Eu e você, por não sermos nativos da floresta, não ouviríamos nada, mas eles ouviram a terrível canção: — Iô-ho, Iô-ho, vida de pirata, Bandeira de caveira.
Velejando ou à deriva,
Davy Jones, meu amigo
Viva, viva, viva!
Imediatamente, os garotos perdidos... Ué, onde foi que se meteram? Não estão mais aqui. Nem coelhos desaparecem tão rápido. Já sei onde estão. Com exceção do Espeto, que saiu rápido como um tiro para averiguar, estão todos em sua casa subterrânea, uma residência muito agradável da qual veremos boa parte em breve. Mas como chegaram lá? Não há nenhuma entrada à vista, nem sequer uma pedra do tipo que, quando rolada, abre a entrada de uma caverna. Contudo, olhe com atenção e observe que há sete árvores, cada uma delas tem um grande

buraco em seu tronco oco, da largura de um menino. São as sete entradas para a casa subterrânea, lugar que Hook procura sem sucesso há muitas luas. Será que ele a encontrará esta noite? Conforme os piratas avançam, o olho atento de Starkey vê Espeto desaparecer no mato. Ele imediatamente saca sua pistola, mas um gancho aferroa seu ombro. — Solta, Capitão! — ele grita, debatendo-se. Pela primeira vez ouvimos a voz soturna de Hook: — Primeiro, abaixe a pistola — disse, ameaçador. — Era um daqueles meninos que o senhor odeia. Eu poderia ter matado o garoto. — Sim, mas o disparo atrairia a tribo de Lily Tigre. Você quer ser escalpelado? — Quer que eu vá atrás dele, capitão? — perguntou o patético Rolha. — Posso fazer cócegas nele com meu Joãozinho Saca-Rolha. O imediato dava nomes engraçados para tudo. Seu facão era o Joãozinho Saca-Rolha, chamava-o assim porque sempre o torcia depois de enfiá-lo no bucho de alguém. Rolha tinha muitas características fascinantes. Por exemplo, depois da matança, limpava primeiro seus óculos e, só depois, sua arma. — O Saca é um sujeito bem calado — sugeriu ao capitão. — Agora não, Rolha — disse Hook, sombriamente. — Ele está sozinho e eu quero apanhar todos os sete. Separem-se e procurem por eles. Os piratas desapareceram entre as árvores. Em um instante o capitão e Rolha estavam a sós. Hook suspirou profundamente — e não sei por qual motivo, talvez tenha sido a suave beleza da noite. Teve vontade de confidenciar toda a sua história ao fiel imediato. Falou por muito tempo, de maneira bastante franca, mas Rolha — que era um tanto tapado — pouco entendeu do que ele falou. Pouco depois, Rolha pescou a palavra “Peter”.

— Mais do que tudo — Hook falava empolgado —, eu quero o capitão deles, Peter Pan. O maldito cortou meu braço fora. E brandiu seu gancho de forma ameaçadora: — Quero muito cumprimentá-lo. Rasgá-lo ao meio! — Já ouvi muitas vezes o senhor dizer que esse gancho valia por muitas mãos, para pentear o cabelo e para outros usos domésticos — disse Rolha. — Sim — o capitão respondeu. — Se eu fosse uma mãe, rezaria para que meus filhos nascessem com isto em vez disto — falou, olhando orgulhoso para sua garra de ferro e com desprezo para a outra mão. Então franziu o cenho novamente: — Peter empurrou meu braço — disse, tremendo — na direção de um crocodilo que por acaso passava por ali. — Já percebi — comentou Rolha —, por isso o senhor tem esse estranho pavor de crocodilos. — Crocodilos, não. Só daquele crocodilo — corrigiu Hook. E baixou a voz: — Ele gostou tanto do meu braço, Rolha, que nunca mais parou de me seguir, de mar a mar e terra a terra, sempre lambendo os beiços de vontade de comer o resto do meu corpo. — De certo modo, é um elogio — apontou Rolha. — Dispenso elogios desse tipo — Hook rosnou rabugento. — Quero Peter Pan, que plantou nessa fera o apetite por mim. Sentou-se em um grande cogumelo, com um leve tremor na voz: — Rolha — disse, com a garganta seca —, aquele crocodilo já teria me comido há tempos, mas minha sorte é que ele engoliu um relógio que faz tique-taque. Por isso, antes que me pegue, viro um corisco ao ouvir aquele som. Ele riu sem vontade. — Um dia desses, a corda do relógio acaba e ele te pega — disse Rolha. Hook mordeu os lábios.

— É o que me deixa mais apavorado — respondeu. Desde que se sentou, sentia um calor inexplicável: — Rolha, esse assento está quente. Deu um salto. — Com mil demônios, estou pegando fogo! Examinaram o cogumelo, que era de um tamanho e textura nunca vistos no continente. Ele saiu de uma vez em suas mãos quando o puxaram, pois não tinha raízes. Mais estranho ainda: uma fumaça começou a sair do buraco. Os piratas se olharam: — Uma chaminé! — exclamaram ambos. A verdade é que descobriram a chaminé da casa subterrânea. Os garotos costumavam cobri-la com um cogumelo quando os inimigos rondavam. Não apenas saía fumaça dali. Também se ouvia a voz dos garotos, pois eles se sentiam tão seguros no esconderijo que conversavam alegremente. Os piratas ouviram tudo atentamente, depois recolocaram o cogumelo no lugar. Olharam ao redor e notaram os buracos nas sete árvores. — Ouviu quando disseram que Peter Pan não está em casa? — sussurrou Rolha, passando os dedos no fio do Saca-Rolha. Hook assentiu com a cabeça. Ficou por muito tempo perdido em pensamentos até que um sorriso maléfico iluminou sua face morena. Era o que Rolha esperava: — Qual é o plano, capitão? — disse ansioso. — Voltar ao navio e preparar um grande bolo, bem recheado e com açúcar verde por cima — Hook respondeu devagar, rangendo os dentes. — Deve haver somente um cômodo lá embaixo, pois só há uma chaminé. Essas toupeiras idiotas e sem mãe não entendem que não é necessário uma porta para cada um. Deixaremos o bolo na beira da Laguna das Sereias. Eles estão sempre por lá, nadando e brincando. Vão encontrar o bolo e devorá-lo inteiro. Quem nunca teve mãe não sabe o perigo de comer um bolo tão grande e com tanto recheio.

Caiu na gargalhada, agora não com um riso vazio, mas uma risada genuína: — Arrá, vão todos morrer. A admiração de Rolha só aumentava: — É o melhor e mais terrível plano que eu já vi — comentou. Exaltados, dançavam e cantavam: — Segurar, amarrar,
só de me ver chegar,
já vai se borrar de medo;
Quando me cumprimentar
vai ficar sem dedo.
Começaram a cantar a estrofe mas não terminaram. Outro ruído os paralisou. No começo era um som tão distante e suave que uma folha caindo no chão faria mais barulho. Foi ficando mais familiar conforme se aproximava: Tique-taque, tique-taque, tique-taque! Hook sentiu um calafrio e ficou imóvel, com um dos pés ainda levantado. — O crocodilo! — gritou e saiu em disparada, seguido por seu imediato. Era de fato o crocodilo. Havia ultrapassado os peles-vermelhas, que tinham seguido a trilha dos outros piratas. O crocodilo seguia Hook, inexorável. Os garotos saíram outra vez pela abertura, mas aquela noite ainda guardava outros perigos. Espeto chegou correndo, perseguido por uma alcateia. Os lobos estavam com as línguas de fora e seus uivos eram aterrorizantes. — Socorro, socorro! — gritou Espeto, caindo no chão. — E agora? E agora?

Era um grande elogio a Peter que pensassem nele em um momento de desespero. — O que Peter faria? — disseram em uníssono. Todos gritaram quase ao mesmo tempo: — Peter olharia para os lobos com a cabeça entre as pernas! Portanto: — Vamos fazer o que Peter faria! Esse é um dos modos mais eficazes para enfrentar lobos. Ao mesmo tempo, como se fossem um único menino, todos os garotos se curvaram. Com a cabeça para baixo, entre as pernas, eles encararam as feras. O momento seguinte foi o mais tenso, mas a vitória veio rápido, pois conforme os meninos avançavam em direção aos lobos nessa temível posição, os animais se assustaram e fugiram. Espeto se levantou do chão. Os outros acharam que seus olhos ainda estavam arregalados em razão dos lobos, mas não: — Eu vi uma coisa impressionante — disse, enquanto os outros se reuniam ao redor dele, ansiosos. — Um grande pássaro branco. Está vindo para cá. — Que tipo de pássaro? — Não sei — respondeu maravilhado —, mas parecia exausto e voava resmungando “coitada da Wendy”. — “Coitada da Wendy”? — Eu me lembro que existem pássaros chamados de Wendies — disse Fiapo no mesmo instante. — Vejam! Lá está ele! — gritou Caracol, apontando para Wendy no céu. A menina estava quase sobre eles, era possível ouvi-la choramingando. Mais clara ainda, no entanto, era a voz estridente de Tinker Bell. A fadinha enciumada tinha desistido de qualquer dissimulação de amizade e atacava sua vítima por todos os lados, dando beliscões doloridos: — Ei, Tink! — exclamaram os garotos, um tanto confusos. Tink tilintou em resposta: — Peter quer que vocês atirem nessa Wendy. Não era do feitio deles questionar nenhuma ordem de Peter: — Vamos fazer o que Peter deseja! — gritaram os simplórios garotos. — Rápido, peguem os arcos e as flechas! Todos, menos Piuí, pularam para dentro de suas árvores. Ele já estava com seu arco e flecha. Tink percebeu e esfregou as mãozinhas: — Rápido, Piuí, rápido! — gritou. — Peter vai ficar muito contente! Agitado, Piuí armou a flecha: — Saia da frente, Tink! — bradou e disparou. Wendy caiu rodopiando. Quando chegou ao chão, tinha uma flecha cravada no peito.

A CASINHA

O imprudente Piuí estava ali, impávido como um vencedor, com Wendy a seus pés, quando os garotos ressurgiram armados de suas árvores. — Chegaram atrasados! — exclamou orgulhoso. — Acertei a Wendy. Peter vai ficar contente comigo. Lá de cima, Tinker Bell gritou: — Sua mula velha! — E voou em disparada para se esconder. Os garotos não a ouviram, pois estavam todos ao redor de Wendy. Enquanto a observavam, um silêncio terrível caiu sobre a floresta. Se o coração dela ainda estivesse batendo, daria para ouvir. Fiapo rompeu o silêncio: — Isso não é um pássaro — disse, assustado. — Acho que deve ser uma menina. — Uma menina? — exclamou Piuí, estremecendo. — E nós a matamos — Espeto concluiu com tristeza. — Agora eu entendi — interveio Caracol. — Peter a estava trazendo para nós. E de remorso ele se jogou no chão. Todos tiraram seus chapéus: — Uma menina para tomar conta de nós, finalmente — disse um dos gêmeos —, e você a matou! Sentiam muito pelo Piuí, mas ainda mais por si mesmos. Quando ele deu um passo à frente, todos se afastaram. Piuí estava pálido, porém manteve uma altivez nunca demonstrada. — Eu fui o responsável por isso — disse a si mesmo. — Quando meninas aparecem para mim em sonhos, sempre digo: “Mãezinha linda, minha mãezinha linda”. Agora, quando finalmente aparece uma de verdade, eu atiro nela. Afastou-se devagar. — Não vá embora — os garotos o chamaram, com pena dele. — Não tenho escolha — respondeu trêmulo. — Estou morrendo de medo do Peter. Nesse momento escutaram um ruído que quase fez o coração deles sair pela boca. Ouviram Peter imitando um galo: — Peter! — exclamaram, pois era assim que ele avisava quando estava de volta. — Escondam a menina — sussurraram. Rapidamente se juntaram ao redor de Wendy, mas Piuí permaneceu afastado. De novo ouviu-se o canto do galo. Peter pulou no meio deles. — Saudações, garotos! — exclamou. Todos responderam automaticamente e voltaram a ficar em silêncio. Peter fechou a cara: — Estou de volta! — disse. — Por que não estão comemorando? Os garotos chegaram a abrir a boca, mas nada disseram. Peter ignorou, pois estava ávido para contar as novidades:

— Ótimas notícias, garotos! — exclamou. — Finalmente trouxe uma mãe para vocês. Nem assim se manifestaram, exceto pelo som abafado de Piuí caindo de joelhos. — Ainda não a viram? — perguntou Peter, começando a ficar preocupado. — Ela estava voando para cá. — Ai de mim! — uma voz se levantou e outra complementou: — Ah, que dia azarado! Piuí se levantou. — Peter — disse calmamente —, vou te mostrar onde ela está. Os outros ainda tentavam esconder Wendy quando Piuí interveio: — Para trás, gêmeos, deixem Peter vê-la. Todos se afastaram para que Peter pudesse ver. Após contemplá-la por alguns instantes, ficou sem saber o que fazer: — Ela morreu — Peter disse, inconsolável. — Talvez esteja com medo de estar morta. Peter pensou em sair pulando dali até ficar longe o bastante e nunca mais voltar àquele lugar. Os garotos facilmente o seguiriam se ele fizesse isso, mas lá estava a flecha. Peter a tirou do peito de Wendy e encarou seu bando. — De quem é esta flecha? — exigiu saber. — É minha, Peter — respondeu Piuí, ainda de joelhos. — Ah, seu covarde traidor! — exclamou Peter, empunhando a flecha como um punhal. Piuí não se encolheu. Deixou o peito à mostra. — Vai, Peter — disse com firmeza —, crave sem dó. Peter ameaçou golpeá-lo duas vezes e em ambas sua mão parou. — Não consigo — disse, confuso. — Alguma coisa está segurando minha mão. Todos o olharam estarrecidos, exceto Espeto, que por sorte olhava para Wendy.

— Olha só! — exclamou. — Olha o braço dela, da menina Wendy! Vejam! Por incrível que pareça, Wendy tinha mexido seu braço. Espeto se debruçou sobre ela e a escutou com atenção: — Acho que ela disse “Coitado do Piuí” — sussurrou. — Está viva? — Peter disse em seguida. No mesmo segundo, Fiapo gritou: — A menina Wendy está viva! Peter se ajoelhou ao lado dela e viu a bolota. Lembre-se que é a bolota que ela havia colocado em seu colar. — Vejam — disse Peter —, foi isso que deteve a flecha. É o beijo que eu dei a ela. Salvou sua vida. — Eu me lembro de beijos — Fiapo comentou. — Deixa eu ver! Sim, é um beijo mesmo! Peter não deu atenção. Implorava para que Wendy ficasse boa logo, queria muito lhe mostrar as sereias. Obviamente ela ainda não conseguia falar, pois estava fraca e em estado de choque. No entanto, ouviram um gemido vindo do alto. — Ouçam, é a Tink! — disse Caracol. — Chora porque Wendy vive! Sentiram-se na obrigação de denunciar o crime de Tink para Peter e nunca o viram tão bravo. — Escute aqui, Tinker Bell! — exclamou Peter. — Não sou mais seu amigo. Fique longe de mim para sempre. Ela pousou em seu ombro e suplicou, mas ele a afastou com a mão. Só depois de Wendy erguer novamente o braço é que ele amenizou sua punição: — Tudo bem, não para sempre, mas por uma semana. Você acha que Tinker Bell ficou agradecida por Wendy ter levantado o braço em favor dela? Ah, é claro que não. Ficou ainda com mais vontade de beliscá-la. Fadas são esquisitas mesmo. Peter, que as conhecia muito bem, às vezes tinha de ser duro com elas.

Mas o que fazer com Wendy, que estava em um estado tão delicado? — Vamos levá-la para casa — sugeriu Caracol. — Isso mesmo — concordou Fiapo —, é isso o que se deve fazer com as garotas. — Não, não — interveio Peter. — Nada de encostar nela. Seria falta de respeito. — É exatamente o que eu estava pensando — emendou Fiapo. — Mas se a deixarmos aqui, ela morrerá — apontou Piuí. — Pois é, ela vai morrer — concordou Fiapo —, mas não há outra saída. — Há, sim — disse Peter. — Vamos construir uma casinha em volta dela. Adoraram a sugestão. — Rápido — ordenou Peter. — Tragam tudo o que temos de melhor. Vasculhem nossa casa. Usem a cabeça. No momento seguinte, já estavam ocupados como alfaiate em véspera de casamento. Corriam para cima e para baixo, pegando cobertas e lenha. No meio de todo esse alvoroço chegam John e Michael. Quando tocaram o chão, caíram no sono, em pé mesmo. Depois acordaram, deram um passo e dormiram novamente. — John, John! — chamou Michael. — Acorde! Cadê a Nana, John? E a mamãe? John esfregou os olhos e murmurou: — É verdade mesmo, nós voamos. Sem dúvida que ficaram aliviados por encontrar Peter. — Oi, Peter! — disseram. — Oi, garotos! — Peter respondeu alegremente, sem nem reconhecê- -los direito. No momento, estava muito ocupado medindo Wendy com seus pés para calcular o tamanho ideal da casinha. Obviamente queria espaço suficiente para ter mesa e cadeiras. John e Michael o observaram: — A Wendy dormiu? — perguntaram. — Dormiu.

— John, vamos acordá-la para que ela faça o jantar para nós — sugeriu Michael. Nesse momento, porém, alguns garotos voltavam com galhos para a construção da casinha. — Quem são eles? — perguntou Michael. — Caracol — ordenou Peter, em seu tom de voz de capitão —, esses dois vão nos ajudar a construir a casa. — Sim, senhor. — Construir uma casa? — perguntou John. — É para a Wendy — explicou Caracol. — Para Wendy? — disse John, espantado. — Mas ela é só uma garota. — Por isso mesmo — Caracol replicou. — Nós somos seus criados. — Vocês? Criados da Wendy? — Sim — afirmou Peter —, e vocês também. Levem eles, garotos. Confusos, os irmãos foram levados para cortar, separar e carregar coisas. — Cadeiras e lareira primeiro — Peter ordenou. — Construiremos a casa em volta. — Sim, senhor — disse Fiapo —, é assim que se constrói uma casa. Eu me lembro bem. Peter pensava em tudo: — Fiapo, vá chamar um médico — ordenou. — Sim, senhor — respondeu Fiapo. Partiu imediatamente, coçando a cabeça atrapalhado. Ele sabia, no entanto, que não podia desobedecer. No segundo seguinte já estava de volta, usando o chapéu de John com uma atitude muito solene. — Por favor, senhor — disse Peter, dirigindo-se até ele. — Você é o médico? A diferença entre Peter e o resto dos garotos é que em situações como essas, eles sabiam o que era faz de conta, mas para Peter não havia diferença entre o que era fingimento e o que era realidade. Isso às vezes causava

alguns problemas, por exemplo, quando tiveram que fazer de conta que haviam jantado. Peter machucava severamente os dedos de quem não respeitasse o faz de conta. — Sim, meu jovem — respondeu Fiapo, temeroso, pois ainda tinha os dedos doloridos de tantos castigos. — Por favor, senhor — pediu Peter —, a menina está muito doente. Wendy ainda estava deitada no chão, mas Fiapo teve o bom senso de fingir que não sabia onde ela estava: — Vamos cuidar disso. Onde ela está? — perguntou Fiapo. — Na clareira ali em frente. — Vou colocar um aparato de vidro na boca da menina — disse Fiapo, e fez de conta que a tratava enquanto Peter esperava. O momento em que retirou o aparato foi derradeiro. — Como ela está? — indagou Peter. — Vamos ver. Pronto! Está curada. — Que bom! — Peter exclamou. — Voltarei à noite — disse Fiapo. — Dê a ela caldo de carne em uma xícara com bico. Logo depois de devolver o chapéu a John, Fiapo soltou todo o ar do pulmão, como sempre fazia quando se livrava de alguma enrascada. Enquanto isso, o barulho de machados enchia a floresta. Quase todo o necessário para a casinha já estava disposto perto de Wendy. — Adoraria saber que tipo de casa ela gosta mais — disse um dos garotos. — Peter! — gritou outro garoto — Ela está se mexendo! — Está abrindo a boca — exclamou um terceiro, observando com cuidado o interior da boca de Wendy. — Que ótimo! — Talvez ela cante dormindo — disse Peter. — Wendy, cante para nós que tipo de casa você gostaria de ter. Imediatamente, sem abrir os olhos, Wendy começou a cantar:

— Queria ter uma casinha, A menor que já se viu.
Com paredes vermelhinhas.
Telhas verdes e lambril.
Ao ouvirem isso, os garotos ficaram exultantes, pois por um grande golpe de sorte, os galhos que haviam apanhado estavam cobertos de seiva avermelhada e havia musgo verde por todo o chão. Enquanto erguiam a casinha, também cantavam:
— Fizemos paredes e telhado E uma portinha linda.
Diga, Wendy, mãezinha,
O que você quer ainda?
Ainda insatisfeita, Wendy respondeu: — Acho que eu quero agora Lindas janelas em volta, Com rosas do lado de fora E filhos correndo pela porta. Abriram os buracos das janelas aos murros. Grandes folhas amarelas eram as cortinas, mas e as rosas? — Rosas! — ordenou Peter, autoritário. Rapidamente fingiram plantar lindos canteiros de rosas junto às paredes, mas e os filhos? Antes que Peter exigisse os filhos, apressaram-se em cantar: — Plantamos canteiros de rosas,
Os filhos já estão aqui fora.
Não podemos nascer de novo,
Somos crescidos agora.

Peter gostou da ideia e na mesma hora acreditou ser o responsável por tudo. A casa tinha ficado muito bonita. Wendy parecia bem confortável lá dentro. No entanto, não dava mais para vê-la. Peter conferia de cima a baixo, exigindo os acabamentos. Nada escapava aos seus olhos atentos. Quando tudo parecia finalmente acabado, ele ainda disse: — Falta a aldrava para bater na porta. Todos ficaram envergonhados, mas Piuí tirou a sola do sapato e com ela fez um ótimo batedor de porta. “Agora sim, tudo finalizado”, pensaram. Nem de longe. — Não tem chaminé — Peter observou. — Precisamos de uma chaminé. — Uma chaminé é imprescindível — disse John, sentindo-se importante. Isso deu a Peter uma ideia. Apanhou o chapéu da cabeça de John, arrancou a parte de cima e o colocou sobre o telhado. A casinha ficou tão satisfeita de ter uma chaminé tão elegante, que imediatamente começou a soltar fumaça pelo buraco do chapéu, como se estivesse agradecida. Agora sim, completamente finalizada, não restava mais nada a fazer senão bater à porta. — Arrumem-se o melhor que puderem — Peter ordenou. — A primeira impressão é a que fica. Ficou feliz por ninguém perguntar o que seria uma primeira impressão. Todos se esforçavam para se arrumar. Ele bateu à porta com muita delicadeza. Tanto a floresta quanto os garotos ficaram em completo silêncio. Nada se ouvia a não ser o tilintar de Tinker Bell, que observava de um galho, extremamente irritada. “Será que alguém abriria a porta?”, os garotos se perguntavam. Se fosse uma menina, como ela seria? A porta se abriu e uma menina surgiu. Era Wendy. Todos tiraram seus chapéus.

Ela se mostrou realmente surpresa. Era exatamente a reação que os garotos esperavam. — Onde estou? — ela perguntou. Fiapo foi o primeiro a falar. — Menina Wendy — disse apressadamente —, construímos essa casa para você. — Ah, diga que você gostou — implorou Espeto. — Pois é uma casinha muito bonitinha! — respondeu Wendy, dizendo exatamente o que eles queriam ouvir. — E nós somos seus filhos! — exclamaram os gêmeos. Todos ficaram de joelhos, com os braços esticados para Wendy, pedindo: — Ah, menina Wendy, seja nossa mãe! — Será que eu devo? — perguntou Wendy, radiante. — A ideia é fascinante, mas sabe, sou só uma menina. Não tenho experiência como mãe. — Não importa — interveio Peter, como se fosse a única pessoa presente que soubesse o que estava falando, embora fosse o que menos entendia daquele assunto. — Nós precisamos de alguém gentil e com um bom instinto maternal. — Nossa! — disse Wendy. — É exatamente assim que eu sou. — É assim que você é! — todos gritaram. — Nós percebemos logo de cara. — Muito bem — Wendy aceitou. — Farei o meu melhor. Agora entrem já em casa, seus garotos travessos! Seus pés devem estar molhados. Antes de colocar vocês na cama, só tenho tempo de contar a história da Cinderela. Entraram. Não sei como couberam todos lá, mas na Terra do Nunca sempre dá para espremer tudo até caber. Aquela foi a primeira das muitas noites alegres que tiveram com Wendy. Um por um, ela os colocou na grande cama da casa subterrânea, embaixo das árvores, e foi dormir na casinha. Peter ficou vigiando do lado de fora, com sua espada em punho, pois era possível ouvir a gritaria dos piratas ao longe. Os lobos também andavam à espreita. A casinha parecia muito aconchegante e segura no escuro da noite, com uma luz brilhante transparecendo pelas cortinas, a chaminé soltando fumaça e Peter montando guarda. Depois de algum tempo ele acabou caindo no sono. Algumas fadas desnorteadas voltavam de uma festa e tiveram de passar por cima dele. Qualquer outro garoto no meio do caminho delas à noite seria alvo de travessuras, mas elas só deram um peteleco no nariz de Peter e seguiram seu caminho.

A CASA DEBAIXO
DA TERRA

No dia seguinte, uma das primeiras coisas que Peter fez foi medir Wendy, John e Michael para saber em quais árvores eles caberiam. Hook, como você deve se lembrar, zombou quando descobriu que os garotos usavam uma árvore cada um. No entanto, isso mostra o quanto ele não sabia como as coisas funcionavam, porque a não ser que você passasse direitinho pela sua árvore, seria difícil subir ou descer e nenhum dos garotos era do mesmo tamanho. Depois de entrar pelo buraco do tronco, era preciso segurar a respiração, porque só assim é possível descer na velocidade certa. Para subir, era preciso ir soltando e puxando o ar, de maneira a ir avançando pouco a pouco. Dominada essa técnica, era possível entrar e sair de forma automática, sem nem pensar. Parecia uma dança. Resumindo, era preciso caber perfeitamente no tronco e é exatamente por isso que Peter tirava medidas como um alfaiate. A diferença é que, nesse caso, são as roupas que precisam servir na pessoa. No caso das árvores, é a pessoa que precisa servir dentro delas. É um processo simples: basta usar mais ou menos roupas na hora de entrar. Para aqueles rechonchudos em alguns lugares ou para os troncos com formato esquisito, Peter mudava algumas coisas até tudo se encaixar. Depois, cada um era responsável por manter-se na mesma forma para continuar cabendo no buraco de sua respectiva árvore. Isso, segundo Wendy, era ótimo para a saúde da família. Wendy e Michael couberam em suas árvores logo na primeira tentativa, mas Peter teve que mexer um pouquinho em John. Depois de alguns dias de prática, eles já conseguiam subir e descer pelos troncos como se fossem elevadores. Passaram a amar a casa subterrânea, principalmente Wendy. Como toda boa casa, tinha uma grande sala onde era possível cavar o chão para pegar minhocas e usá-las como isca de pesca. Lá também cresciam sólidos cogumelos que eram usados como bancos. Uma Árvore do Nunca tentava crescer no centro da sala, mas eles cortavam seu tronco todas as manhãs, bem rente ao chão. No final da tarde, na hora do café, o tronco já estava com mais de meio metro, e então eles colocavam uma porta deitada sobre ele para fazer uma mesa. Quando acabavam e limpavam tudo, cortavam o tronco outra vez, para dar mais espaço às brincadeiras. Havia também uma lareira, tão grande que podia ser acesa praticamente de qualquer lugar da sala. Nela Wendy amarrava cordas de fibra como varal para secar as roupas. Durante o dia, viravam as camas para a parede. Às seis e meia da tarde, baixavam todas novamente, preenchendo quase metade do cômodo. Todos os garotos se espremiam como sardinhas para dormir, exceto Michael. Ele bem que gostaria de dormir na cama com os outros, mas Wendy fazia questão de um filho bebê. Como ele era o menor de todos e sendo as mulheres como são, ele acabava dormindo em um cesto. Tudo era rústico e simples, parecido com ursos filhotes em suas tocas. Numa cavidade na parede, menor do que uma gaiola, ficavam os aposentos

privados de Tinker Bell. Uma pequena cortina os separavam do resto da casa. Melindrosa como era, a fada sempre a mantinha fechada quando se trocava. Nenhuma mulher, não importa de que tamanho, tinha um quarto mais excêntrico. Ela dizia que sua cama era uma genuína Queen Mab9 (modelo fadas), com pernas em estilo rococó. Ela variava a tonalidade da roupa de cama de acordo com as estações. O espelho era um raro Gatobotanesco10, dos três que ainda restavam preservados no mundo — número confirmado pelos antiquários. O lavabo era modular com as bordas adornadas, a cômoda era uma legítima Encantado VI11, e os tapetes eram do período de Margery e Robin12. Ainda havia um candelabro feito com fichas de jogo, mas esse era só por aparência, porque Tinker Bell iluminava o cômodo com seu brilho próprio. Ela desprezava o restante da casa, o que talvez fosse inevitável, já que seu quarto, por mais bonito que fosse, tinha um quê de esnobe e destoava dos demais aposentos. Imagino que para Wendy, principalmente, tudo era muito fascinante, mesmo com todo o trabalho que aqueles meninos agitados davam. Ela chegava a passar semanas inteiras sem sair de casa, exceto à noite, quando ia para a superfície tomar um ar e cerzir meias. Passava horas na cozinha limpando e organizando as panelas, mesmo quando não havia o que cozinhar. Ficava sempre atenta, pois algo podia simplesmente começar a ferver. Dependia de Peter se haveria uma refeição de verdade ou apenas de faz de conta. Ele era capaz de comer muito, muito mesmo, se fosse parte de alguma brincadeira, mas não conseguia se empanturrar só pelo

prazer da comida, como a maioria das crianças adora fazer. Fazer de conta era tão real para ele que mesmo se comesse uma refeição de mentira era possível vê-lo ficando mais gordo. É claro que isso era perigoso, mas todos eram obrigados a seguir suas vontades. Porém, caso você conseguisse provar que estava magro demais para sua árvore, ele deixaria você comer o quanto quisesse. O horário preferido de Wendy para costurar era depois de todos terem ido dormir. Só então, como dizia, finalmente tinha um tempo para si mesma. Ocupava esse tempo fazendo roupas novas para os garotos ou reforçando os joelhos das calças deles — a parte mais maltratada de todas. Quando ela se sentava com uma cesta de meias para costurar — todas com os calcanhares rasgados —, erguia os braços para o céu e suspirava: — Ai ai, às vezes sinto inveja de quem não tem filhos! Mas seu rosto sempre se iluminava com um sorriso quando ela dizia isso. Você se lembra que ela tinha um filhote de lobo? Pois ele descobriu logo que ela havia chegado à ilha e saiu para procurá-la. Quando se encontraram, correram um em direção ao outro. Depois disso, ele a seguia por toda parte. Conforme o tempo passava, será que ela pensava muito em seus pais abandonados? É uma pergunta complexa, porque não é fácil dizer de que forma o tempo passa na Terra do Nunca, já que lá ele é medido pelas luas e sóis, que mudam muito mais rápido do que no mundo real. Receio que Wendy não se preocupava mais tanto com seus pais, pois tinha certeza de que manteriam a janela do quarto aberta para quando ela quisesse voltar. Isso a deixava bastante tranquila. O que a inquietava às vezes era que John mal se lembrava dos pais. Para ele eram apenas conhecidos do passado. Michael, por sua vez, já acreditava que Wendy era sua mãe de verdade. Isso a deixava um pouco incomodada. Com uma nobre determinação, ela tentava manter viva na memória deles aquela vida anterior, aplicando provas parecidas com as da velha escola. Os garotos achavam aquilo muito

interessante e faziam questão de participar. Faziam suas próprias folhas de resposta e se sentavam em volta da mesa, escrevendo e se esforçando nas questões que Wendy passava. As perguntas eram das mais simples: “De que cor eram os olhos da mamãe?”; “Quem era mais alto: papai ou mamãe?”; “A mamãe era loira ou morena?”; “Se possível, responda a todas as questões”. “Escreva uma redação com mais de quarenta palavras com um dos seguintes temas: ‘Como foram minhas férias?’ ou ‘Um comparativo entre as personalidades de papai e mamãe’”. Ou ainda: “(1) Descreva a risada da mamãe”; “(2) Descreva a risada do papai”; “(3) Descreva o vestido de gala da mamãe”; “(4) Descreva a casinha de cachorro e quem mora ali”. Eram perguntas simples, mas quando alguém não sabia a resposta, tinha que escrever um X naquele espaço. A quantidade de X nas provas de John era alarmante. O único garoto que respondia a todas as questões era Espeto, que sempre acreditava ter tirado a melhor nota. Mas suas respostas eram ridículas e ele sempre acabava com a pior nota. Era algo triste de se ver. Peter não participava das aulas. Primeiro, porque detestava todas as mães, menos Wendy. Além disso, era o único garoto da Terra do Nunca que não sabia ler nem escrever nadinha. Ele estava acima dessas coisas. É importante notar que todas as questões eram escritas no passado: “De que cor eram os olhos da mamãe?” e assim por diante. Wendy, veja só, também estava se esquecendo deles. Quanto às aventuras, obviamente não se passava um dia sem elas, como veremos. Com a ajuda de Wendy, Peter inventou uma nova brincadeira, que o divertia por um tempo, pois, como já vimos, ele enjoava das coisas muito rápido. Consistia em fingir que não havia nenhuma aventura, ou seja, o jogo era viver como Michael e John viviam antes de irem para a ilha. Ficavam todos quietos, sentados em um banco, jogando bolas para o ar, brincando de luta e fazendo passeios sem sequer matar um urso. Ver Peter sentado em um banco sem fazer nada era admirável. Às vezes,

ele ficava com um aspecto solene, porque, para ele, manter-se quieto era algo muito engraçado. Peter se gabava dizendo que tinha ido dar um passeio porque isso fazia bem à saúde. Por muitos dias, essa novidade foi sua aventura preferida. John e Michael também fingiam estar gostando, caso contrário levariam uma grande bronca de Peter. Peter muitas vezes saía sozinho. Quando retornava, era impossível dizer ao certo se ele havia vivido uma aventura ou não. Ele podia se esquecer completamente do que acabara de fazer e não ter nada para contar. Porém, bastava alguém sair da casa para encontrar um cadáver. Ele também era capaz de contar uma grande história, mas depois não havia nenhum corpo. Às vezes, ele voltava para casa com a cabeça enfaixada, e Wendy limpava e cuidava da ferida enquanto ele contava um caso fascinante. Mesmo assim, ela nunca tinha certeza se era verdade ou não. Ela sabia que de fato muitas das aventuras realmente aconteceram, pois tinha participado. Outras eram parcialmente verdadeiras, mesmo aquelas nas quais os outros garotos estiveram presentes. Evidentemente, todos eles juravam de pés juntos que tudo havia acontecido exatamente daquela maneira. Para descrever todas essas histórias seria necessário um livro grande, da espessura de um dicionário. Em razão disso, o máximo que podemos fazer é dar um exemplo de uma hora de vida comum na ilha. A dificuldade é saber qual escolher. Talvez a luta contra os peles-vermelhas no desfiladeiro do Varapau? Foi uma batalha sangrenta e muito interessante. Ilustra bem uma das peculiaridades de Peter, que é trocar de lado no meio da luta. No desfiladeiro, quando a luta ainda estava equilibrada, podendo ser vencida por qualquer um, ele gritou: — Agora eu sou um pele-vermelha! Piuí, o que você é? E Piuí respondeu: — Pele-vermelha! O que você é, Espeto? — Pele-vermelha! O que você é, gêmeo? E assim foi até que todos os garotos viraram peles-vermelhas. A luta Joguei a moeda e a vencedora foi a aventura da laguna. Minha vontade era de contar a aventura do desfiladeiro, ou a do bolo, ou a da folha de Tink. Eu poderia jogar a moeda outra vez e tirar a melhor de três. No entanto, o mais justo talvez seja contar a da laguna logo de uma vez.

deveria terminar ali, mas acontece que os peles-vermelhas de verdade ficaram tão intrigados com o método de Peter que aceitaram ser garotos perdidos só daquela vez, e a batalha recomeçou, ainda mais violenta. A coisa mais extraordinária dessa aventura foi que... calma, ainda não decidimos se contaremos essa. Talvez exista uma melhor, como o ataque noturno dos peles-vermelhas à casa subterrânea, quando vários índios ficaram presos nos buracos das árvores e foram sacados feito rolhas. Ou também podemos contar aquela vez em que Peter salvou Lily Tigre na Laguna das Sereias e ela se tornou sua aliada. Podemos também contar sobre o bolo que os piratas fizeram para envenenar os garotos, de como o colocaram em um local fácil de encontrar. Mas Wendy sempre o arrancava da mão deles antes de darem a primeira mordida. Com o tempo, o bolo ficou seco e duro como uma pedra e passou a ser usado como munição, até que um dia Hook tropeçou nele no escuro. Também podemos contar sobre os pássaros amigos de Peter, especialmente uma Ave do Nunca que fez seu ninho em um galho sobre a laguna. Um dia o ninho caiu na água, mas a ave continuou lá, chocando os ovos. Peter ordenou que ela não fosse incomodada. Essa é uma bela história, que demonstra a gratidão de uma ave, mas para contá-la teríamos que contar toda a aventura na laguna, o que obviamente seriam duas aventuras de uma vez só. Tem ainda uma aventura mais curta, mas igualmente emocionante, quando Tinker Bell e outras fadas colocaram Wendy sobre uma folha no mar, ainda adormecida, para que ela voltasse flutuando para o mundo real. Por sorte a folha afundou e Wendy acordou. Achando que era hora do banho, nadou de volta para a ilha. Também podemos escolher aquela em que Peter provocou os leões. Ele desenhou um círculo ao seu redor no chão, com uma flecha, e os desafiou a cruzar a linha. Mesmo ficando no círculo por horas, com Wendy e os garotos observando aflitos de cima das árvores, nenhum leão se atreveu a aceitar o desafio. Qual aventura escolher? O jeito é decidir no cara ou coroa.

A LAGUNA DAS SEREIAS

Com os olhos fechados e um pouco de sorte, de vez em quando, é possível ver no escuro uma piscina sem forma definida com adoráveis tons pastel ondulando dentro dela. Se apertarmos mais os olhos, a piscina começa a tomar forma e as cores ficam vívidas. Mais um tantinho e logo parece que ela está prestes a pegar fogo. Um pouquinho antes disso é possível ver a laguna. No mundo real, isso é o mais próximo que podemos chegar da Terra do Nunca — tudo dura apenas um único e maravilhoso momento. Se por acaso tivéssemos um momento a mais, poderíamos ver o movimento das águas e ouvir o canto das sereias. As crianças costumavam passar dias inteiros de verão nessa laguna, nadando, boiando, brincando com as sereias e outras coisas assim. Enganase quem pensa que as sereias são amigáveis. Ao contrário, um dos maiores desgostos de Wendy, durante todo o tempo em que esteve na ilha, foi que as sereias nunca foram simpáticas com ela. Quando ia de mansinho até a beira da laguna, via várias delas, principalmente na Pedra dos Exilados, onde adoravam tomar sol e pentear seus cabelos languidamente, o que irritava Wendy. Às vezes ia nadando, também às escondidas, até ficar a um metro de distância delas. Mas, logo que percebiam sua presença, espirravam água em Wendy e mergulhavam para o fundo. Obviamente as sereias tratavam Peter de maneira diferente do resto dos garotos. Ele conversava bastante com elas na Pedra dos Exilados e se sentava em suas caudas quando ficavam inquietas. Ele até deu um dos pentes das sereias de presente para Wendy. O momento mais assustador para observá-las era durante as mudanças da lua, quando entoavam gemidos estranhos, parecidos com os das baleias. Nessas ocasiões, a laguna era perigosa para os mortais. Até a noite da qual falaremos agora, Wendy nunca havia visto a laguna ao luar. Não por medo, pois Peter a teria acompanhado, mas porque ela tinha regras muito rígidas de que todos deviam estar na cama às sete. Apesar disso, sempre ia lá quando fazia sol depois de chover. Nesses dias, as sereias apareciam aos montes para brincar de bolhas. O arco-íris que surgia depois da chuva deixava as bolhas coloridas. Elas então as jogavam com suas caudas, umas para as outras, feito bolas. O jogo consistia em tentar manter as bolhas dentro do arco colorido o máximo possível, até que estourassem. Montavam gols em cada uma das pontas do arco-íris e as goleiras só podiam usar as mãos. Às vezes aconteciam vários desses jogos ao mesmo tempo. Era tudo muito bonito de se ver. Quando os meninos tentavam entrar no jogo, as sereias desapareciam imediatamente. Eles acabavam brincando sozinhos. Mesmo assim, temos provas de que ficavam observando os intrusos secretamente, pois sempre usavam as ideias deles para aperfeiçoar seu jogo. John, por exemplo, inventou de bater nas bolhas usando a cabeça ao invés das mãos. Rapidamente, as sereias incorporaram isso ao seu jogo. Aquele foi o único legado de John para a Terra do Nunca.

Também era uma bela visão as crianças deitadas em alguma pedra por meia hora depois do almoço. Wendy fazia questão disso. O descanso tinha de ser verdadeiro, mesmo que o almoço tivesse sido de faz de conta. Ficavam deitados ali, seus corpos brilhando ao sol, e ela sentada ao lado, com ar imponente. Em um desses dias, estavam todos na Pedra dos Exilados, a qual não era muito maior do que a cama onde dormiam, mas obviamente sabiam fazer caber todo mundo. Cochilavam — ou pelo menos estavam deitados de olhos fechados — e de vez em quando um beliscava o outro quando achavam que Wendy não estava vendo. Ela ficava muito concentrada costurando. Enquanto costurava, algo aconteceu na laguna. A água se encrespou, o sol desapareceu e nuvens surgiram no céu, deixando tudo gelado. Wendy não conseguia sequer enxergar sua agulha. Quando ergueu os olhos, sentiu que a laguna, que havia pouco era um lugar divertido, estava assustadora. Ela sabia que ainda não era a hora, mas algo tão escuro quanto a noite havia chegado. Não, pior que isso. Ainda não havia chegado, mas todas aquelas perturbações que vinham do mar eram o aviso de que estava chegando. O que poderia ser? De repente ela se lembrou das histórias que ouviu sobre a Pedra dos Exilados, que ganhou esse nome porque capitães deixavam marinheiros lá para morrerem. A água cobre a pedra quando a maré sobe e afoga quem estiver ali. Wendy deveria ter acordado as crianças de imediato, não apenas pela sensação de que algo estranho se aproximava, mas porque a pedra estava gelada e eles poderiam acabar resfriados. Era uma mãe inexperiente e não teve esse instinto. Para ela, o correto seria que todos descansassem por meia hora após o almoço. Por isso, mesmo com medo e sabendo que as vozes dos garotos poderiam tranquilizá-la, ela não os acordou. Quando

ouviu o som abafado de remos na água, sentiu seu coração subir à boca, e ainda assim não os acordou. Manteve-se firme para que tivessem seu descanso. Não foi corajoso da parte dela? A sorte dos garotos é que um deles era capaz de farejar perigo mesmo dormindo. Peter deu um salto, atento como um cão de guarda, e acordou todos com um grito. Ficou parado, escutando com a mão na orelha: — Piratas! — exclamou. Os outros se aproximaram. Peter tinha um estranho sorriso, que Wendy notou e a fez estremecer. Quando ele sorria daquela forma, ninguém ousava dizer nada. Apenas esperavam as ordens. E ela veio clara e firme: — Mergulhem! Depois de uma confusão de pernas correndo, a laguna ficou instantaneamente deserta. A Pedra dos Exilados ficou abandonada em meio àquelas águas medonhas, como se a própria pedra tivesse sido exilada. O barco se aproximou. Era o bote dos piratas trazendo três pessoas: Rolha, Starkey e uma prisioneira, ninguém menos do que Lily Tigre. Tinha mãos e pés amarrados e sabia o que a esperava. Seria deixada na pedra para morrer, algo que para o povo guerreiro ao qual pertencia era pior do que morrer na fogueira ou torturada. Afinal, está escrito no livro da tribo que não há caminho para o feliz campo de caça que passe pela água. Sua face não demonstrava emoção. Era a filha do cacique e deveria morrer como tal. Isso era tudo. Ela foi apanhada quando abordava o navio pirata com uma faca na boca. Ninguém estava de vigia, pois sendo o navio de Hook, apenas sua reputação bastava para manter a embarcação segura. Sua morte aumentaria ainda mais essa reputação. Um outro gemido seria ouvido no vento daquela noite. Com a penumbra que trouxeram consigo, os piratas só conseguiram avistar a rocha quando bateram nela:

— Cuidado, seu idiota! — gritou Rolha com seu sotaque irlandês. — Chegamos. Agora vamos deixar a pele-vermelha aí para que se afogue. Bastou um instante para jogarem a bela garota na pedra. Ela era orgulhosa demais para oferecer qualquer resistência. Bem próximo à rocha, mas fora da vista dos piratas, duas cabeças boiavam acima da água. Eram Peter e Wendy, que chorava frente à tragédia que se desenhava. Peter já havia presenciado muitas delas, mas se esquecera de todas. Ele não estava tão chateado por Lily Tigre quanto Wendy. O que o irritou foi o fato de serem dois contra um, por isso era seu dever salvá-la. O modo mais fácil seria esperar os piratas irem embora, mas Peter nunca escolhia o mais fácil. Como não havia muito o que fazer, começou a imitar a voz de Hook: — Alto lá, palermas! Era uma imitação impressionante. — É o capitão! — disseram os piratas, olhando um para o outro. — Ele deve ter vindo nadando — apontou Rolha, enquanto tentavam em vão avistá-lo na água. — Estamos deixando a pele-vermelha na pedra! — gritou Rolha. — Soltem ela agora mesmo — foi a surpreendente resposta. — Soltar? — Sim, soltem! Deixem ela ir. — Mas capitão... — Agora! Entenderam? — gritou Peter. — Senão enfio meu gancho no seu bucho! — Tem alguma coisa estranha — Rolha murmurou. — É melhor fazer o que capitão diz — disse Starkey, nervoso. — É — respondeu Rolha e cortou as amarras de Lily Tigre. Como uma enguia, ela deslizou entre as pernas de Starkey e se atirou na água.

Wendy ficou muito impressionada com a sagacidade de Peter, mas sabia que ele ficaria cheio de si e acabaria se entregando. Por isso, foi até ele e cobriu sua boca com a mão. Mas parece que isso não fez muita diferença, porque a voz de Hook ressoou outra vez pela laguna: — Alô, barco! Dessa vez não tinha sido Peter. Há um minuto, Peter estava prestes a se vangloriar, mas agora seu rosto estava franzido de susto. — Alô, barco! — a voz insistia. Wendy entendeu o que se passava. O verdadeiro Hook também estava na água. Ele nadava em direção ao barco e, quando seus homens acenderam uma lanterna, ele logo os alcançou. Sob a luz da lanterna, Wendy viu seu gancho agarrar o beiral do barco. Viu seu rosto moreno e maléfico se erguer da água e sentiu vontade de fugir dali, mas Peter jamais recuaria. Além do mais, ele seguia agitado e presunçoso. — Eu não sou demais? Ah, eu sou demais! — Peter sussurrou para ela. Embora ela concordasse, também estava aliviada pelo fato de mais ninguém ter escutado aquilo. Peter fez sinal para que escutasse com atenção. Os dois piratas estavam muito intrigados sobre os motivos de o capitão ter ido até lá, mas ele simplesmente se sentou apoiando o rosto no gancho e mergulhou em uma profunda melancolia. — Capitão, está tudo bem? — perguntaram timidamente, mas um gemido triste foi a resposta que tiveram. — Ele está suspirando — sussurrou Rolha. — Suspirou de novo — tornou Starkey. — Está suspirando mais uma vez. Finalmente Hook falou, exaltado: — Agora é sério. Os garotos encontraram uma mãe. Mesmo aterrorizada, Wendy sentiu uma ponta de orgulho.

— Maldição! — exclamou Starkey. — O que é uma mãe? — perguntou o tapado Rolha. Wendy ficou tão compadecida que exclamou: — Ele não sabe o que é ter mãe! Maternal como era, pensou nos piratas como bichinhos de estimação desamparados. Ficou tão comovida que cogitou adotar o Rolha. Nesse instante, Peter a puxou para debaixo d’água, pois Hook se levantou, gritando: — O que foi isso? — Não ouvi nada — disse Rolha, erguendo o lampião. Quando tentaram enxergar algo, o que viram foi inusitado. O ninho de que falei mais cedo vinha flutuando sobre a laguna, com a Ave do Nunca sentada nele. — Veja só — disse Hook, em resposta a Rolha. — Isto é uma mãe. É um bom exemplo. O ninho deve ter caído na água, mas uma mãe jamais abandona seus ovos. Nunca. Ele se calou, pois começou a se lembrar dos inocentes dias de sua infância. Logo afugentou esse momento de fraqueza, brandindo seu gancho. Rolha, muito impressionado, admirava o pássaro conforme o ninho flutuava, mas Starkey, que era um sujeito desconfiado, disse: — Se ela é uma mãe, talvez esteja aqui para ajudar Peter em alguma coisa. Hook sentiu um calafrio e respondeu: — Pois é exatamente esse o meu receio. A voz de Rolha o despertou de seu desânimo: — Capitão, não poderíamos raptar a mãe desses garotos e fazê-la virar nossa mãe? — Mas que ótima ideia! — exclamou Hook, que passou a maquinar um plano com sua inteligência perversa. — Capturamos as crianças e as levamos para o barco. Fazemos os garotos andarem na prancha e Wendy fica sendo nossa mãe.

Mais uma vez, Wendy se descuidou: — Jamais! — exclamou, para logo depois afundar novamente. — O que foi isso? Não conseguiram enxergar nada. Pensaram que tivesse sido um golpe de vento. — Aceitam, patifes? — indagou Hook. — De mão direita erguida — responderam os outros piratas. — E eu ergo meu gancho. Façamos um juramento. Todos juraram. Estavam sobre a pedra e Hook de repente se lembrou de Lily Tigre. — Onde está a pele-vermelha? — perguntou afobado. Ele fazia piadas de vez em quando e os piratas acharam que aquela era uma delas: — Já está tudo certo, capitão. Nós a soltamos — Rolha respondeu, entrando na brincadeira. — Soltaram? — exclamou Hook. — Ué, foram suas ordens. — O imediato desconfiou que não era uma brincadeira. — Você gritou da água para que a soltássemos — Starkey completou. — Com mil demônios! — gritou Hook, furioso. — O que diabos está acontecendo aqui? Sua face se escureceu de raiva. Percebeu, no entanto, que os piratas achavam que aquilo era mesmo verdade. Ficou alarmado: — Rapazes, eu não dei essa ordem — disse, ligeiramente trêmulo. — Que estranho! — respondeu Rolha e todos se ajeitaram desconfortáveis. Hook elevou a voz, mas ainda havia um tremor nela: — Espíritos que assombram esta laguna! — exclamou. — Estão me ouvindo? Obviamente Peter deveria ter ficado calado, mas é claro que não ficou. Respondeu imediatamente, imitando a voz de Hook:

— Maldição, diabos, com mil demônios alados! Ouço sim! Mesmo em um momento como esse, Hook se manteve impassível. Sua respiração não apresentou a menor alteração. Já Rolha e Starkey Cortês se agarraram um ao outro aterrorizados. — Quem é você, estranho? Diga! — Hook ordenou. — Eu sou James Hook — a voz respondeu —, o capitão do navio com bandeira de caveira. — Não, não é. Você não é! — gritou Hook, com voz sombria. — Com mil demônios! — a voz replicou. — Repita isso e te afundo com minha âncora. Hook tentou uma abordagem mais gentil: — Se você é mesmo o Hook — disse em um tom quase humilde —, por favor, me diga quem sou eu então? — Um bacalhau — respondeu a voz. — Você não passa de um bacalhau. — Um bacalhau! — Hook repetiu, sem demonstrar sentimentos. E foi aí, e somente aí, que seu orgulho foi ferido. Notou que seus homens se afastavam dele: — Todo esse tempo e o nosso capitão era um bacalhau? — resmungaram os piratas. — Isso é uma vergonha! Seus cães se voltavam contra ele, mas abalado como estava, mal prestou atenção. Diante dessa terrível afirmação, não era mais a confiança deles que Hook precisava retomar, era a sua própria. Ele sentia sua autoestima desvanecer: — Não me abandone agora — sussurrou para o seu próprio ego. Havia um toque feminino em sua personalidade sombria, como na de todos os grandes piratas, e isso às vezes lhe dava intuições. Assim, tentou um jogo de adivinhações: — Hook — perguntou —, você tem alguma outra voz? Peter, que era incapaz de dispensar uma brincadeira, respondeu alegremente, usando sua própria voz:

— Tenho. — E tem algum outro nome também? — Tenho, sim. — Você é um vegetal? — indagou Hook. — Não. — Você é um mineral? — Não. — Animal? — Sim. — É um homem? — Não! — Essa resposta veio com tom de desdém. — Você é um menino? — Sou. — Um menino comum? — Não. — Um menino mágico? Para o desgosto de Wendy, dessa vez a resposta foi “sim”. — Você mora na Inglaterra? — Não. — Você mora aqui? — Sim. Hook estava completamente perdido: — Perguntem vocês alguma coisa agora — desistiu, enxugando o suor da testa. Rolha se esforçou: — Não consigo pensar em nada para perguntar — disse aborrecido. — Não sabe, não sabe! — provocou Peter. — Desistem? Tomado por seu orgulho, Peter levou o jogo além do que devia e os vilões viram nisso uma oportunidade: — Desistimos! — responderam agitados.

— Bom, então... sou eu, Peter Pan! — exclamou. Pan! Imediatamente Hook voltou a ser o mesmo de sempre. Rolha e Starkey, por sua vez, voltaram a ser seus fiéis lacaios. — Vamos pegá-lo! — Hook gritou. — Mergulhe, Rolha! Starkey, fique no barco! Quero ele vivo ou morto! Hook deu as ordens enquanto saltava do bote. No mesmo instante veio a voz alegre de Peter: — Prontos, garotos? — Sim! — foi a resposta que veio de várias partes da laguna. — Para cima dos piratas! A luta foi rápida e intensa. O primeiro a derramar sangue foi John, que corajosamente subiu no bote e agarrou Starkey. Atracaram-se ferozmente. O pirata deixou sua espada cair e, na sequência, mergulhou. John saltou atrás dele. O bote ficou à deriva. Aqui e ali, cabeças surgiam na água. Depois, um brilho de lâmina em movimentos rápidos seguido por um grito ou um gemido. Na confusão, às vezes acabavam até atacando os próprios amigos. O saca-rolha de Rolha acertou Piuí na costela, que também já estava sendo atacado por Caracol. Mais afastado da rocha, Starkey dava uma boa surra em Fiapo e nos gêmeos. E onde estava Peter durante tudo isso? Em busca do peixe premiado. Todos os garotos eram corajosos e não devem ser julgados por evitar a luta com o capitão. Sua garra de ferro desenhava um círculo mortal na água, do qual eles fugiam como peixes assustados. Só um garoto não tinha medo e se preparava para invadir aquele círculo. Por incrível que pareça, não foi na água que eles se enfrentaram. Hook subiu na rocha para respirar e, no mesmo momento, Peter a escalou pelo outro lado. A superfície era muito escorregadia. Ambos praticamente tiveram de engatinhar sobre ela. Porém, eles não sabiam que estavam tão próximos. Tentavam encontrar algum apoio na pedra, quando um

encostou na mão do outro. Com o susto, ergueram suas cabeças. Seus narizes quase se tocaram. Foi assim que se viram frente a frente. Até os maiores heróis da história já confessaram que, antes de entrar em uma batalha, sentiam um grande frio na barriga. Se Peter tivesse sentido isso também, eu não esconderia. Afinal, o capitão era o único homem que Long John Silver temia. Peter não sentia medo algum. Ao contrário, estava tomado por uma enorme satisfação. Tanto que arreganhou alegremente seus belos dentinhos. Rápido como um raio, apanhou a faca do cinto de Hook e ia acabar com tudo de uma vez por todas quando percebeu que estava em uma posição mais alta na rocha do que seu inimigo. Não seria uma vitória justa. Ofereceu a mão ao pirata para ajudá-lo a subir. Foi quando Hook o mordeu. Não foi a dor, mas o sentimento de traição e trapaça que atordoou e paralisou Peter. Só conseguia olhar para Hook, impressionado. Toda criança se traumatiza quando sofre uma injustiça pela primeira vez. Elas acreditam em uma lealdade recíproca inegociável nessas situações. Quando alguém é desleal com uma criança, pode até ser que um dia ela volte a amar essa pessoa, mas a criança nunca mais será a mesma. Ninguém se recupera da primeira injustiça sofrida, exceto Peter. Ele já tinha sido injustiçado várias vezes, mas sempre se esquecia disso. Talvez fosse essa a principal diferença entre ele e as outras pessoas. Por isso, sempre parecia que era a primeira vez novamente. Ele ficou encarando, imóvel. E por duas vezes o gancho o feriu. Pouco depois disso, os outros garotos avistaram Hook nadando ferozmente em direção ao navio. Sua face terrível já não tinha mais nenhuma expressão de júbilo, apenas medo puro, pois o crocodilo o perseguia incansavelmente. Em qualquer outra ocasião, os garotos teriam nadado ao lado dele, gritando e zombando. Mas agora estavam apreensivos, pois haviam perdido Peter e Wendy de vista. Vasculharam toda a laguna atrás deles, gritando seus nomes. Encontraram o bote dos piratas e o tomaram

para voltar para casa, chamaram por Peter e Wendy durante todo o percurso. Em resposta, somente as gargalhadas debochadas das sereias. — Devem ter voltado voando ou nadando — concluíram. Não estavam muito preocupados, pois tinham confiança extrema em Peter. Riam alegres porque iriam para a cama mais tarde. Tudo graças à mamãe Wendy. Quando pararam de conversar, um silêncio frio caiu sobre a laguna e ouviram um grito débil: — Socorro! Socorro! Duas crianças se debatiam contra as rochas. A menina estava desmaiada e o garoto a segurava. Em seu último esforço, Peter a jogou sobre a rocha e tombou ao lado dela. Antes de desmaiar, ele viu que a água subia. Sabia que logo estariam afogados, mas não era capaz de fazer mais nada. Ainda deitados, lado a lado, uma sereia começou a puxar Wendy lentamente pelos pés, para dentro da água. Peter, sentindo que ela se afastava, acordou assustado, bem a tempo de puxá-la de volta. Ele precisava contar a Wendy o que realmente estava acontecendo: — Estamos na rocha, Wendy, e a água está subindo e vai tomar tudo. Mesmo assim, ela ainda não conseguia entender: — Então vamos sair daqui! — Wendy disse, recompondo-se. — Sim — Peter respondeu com um fio de voz. — Vamos voando ou nadando, Peter? Ele precisava contar toda a verdade para ela: — Você acha que consegue nadar ou voar até a ilha sem minha ajuda, Wendy? Ela teve de reconhecer que estava cansada demais. Peter gemeu. — O que foi? — Wendy perguntou, agora preocupada com ele. — Não consigo te ajudar, Wendy. Hook me feriu. Não consigo voar nem nadar. — Quer dizer que vamos nos afogar?

— Veja como a maré está subindo. Cobriram os olhos com as mãos para escapar daquela visão terrível. Imaginaram que logo estariam mortos. Enquanto se espremiam, Peter sentiu algo em sua pele, leve como um beijo, que o tocava como se perguntasse “posso ajudar?”. Era a rabiola de uma pipa que Michael fizera dias atrás. Havia escapado da mão dele e voado para longe. — A pipa do Michael — Peter exclamou, sem se importar muito com aquilo, mas no momento seguinte agarrou a rabiola e começou a puxá-la. — Se foi forte o suficiente para levantar Michael do chão, talvez consiga erguer você também — exclamou para Wendy. — Nós dois! — Ela não aguenta duas pessoas. Michael e Caracol tentaram. — Vamos tirar na sorte — Wendy propôs, enchendo-se de coragem. — Nunca. Você é menina, você vai. Peter já havia amarrado a rabiola em volta dela, que o abraçou para não ir sozinha. Disse “Adeus, Wendy” e a empurrou da rocha. Em poucos minutos ela já estava fora de vista. Peter ficou sozinho na laguna. Restava apenas um pedacinho da rocha fora da água, que logo ficaria inteiramente submersa. Discretos raios de luz tocavam as águas. Aqui e ali se ouvia o som mais harmonioso — e ao mesmo tempo o mais melancólico — do mundo: sereias cantando para a lua. Apesar de Peter não ser como os outros meninos, ele estava com medo. Um calafrio passou por seu corpo, como o tremor que o vento produz na água do mar. No entanto, no mar, uma ondulação segue outra, infinitamente. Peter, por sua vez, sentiu apenas uma, misto de tremor e onda. No instante seguinte, já estava novamente em pé sobre a rocha, com o mesmo sorriso no rosto e um tambor batendo dentro de seu peito. O tambor dizia: — Morrer deve ser a maior das aventuras.

A AVE DO NUNCA

A última coisa que Peter ouviu antes de ficar completamente sozinho foi o som das sereias se retirando para seus aposentos subaquáticos. No entanto, de onde ele se encontrava não era possível ouvir as portas se fechando. Em cada uma das cavernas de coral que elas moram há um sininho que toca sempre que as portas abrem e fecham, igual às casas no mundo real. Peter ouviu apenas o tilintar dos sinos. A água continuava subindo é já cobria seus pés. Para passar o tempo, antes de ser engolido pela maré, ficou observando a única coisa possível de se ver na laguna. Parecia um papel boiando, talvez um pedaço da pipa. Peter se perdeu em pensamentos, calculando quanto tempo levaria para o papel chegar até a praia. Depois de um tempo, percebeu algo estranho. O papel sem dúvida tinha vontade própria e estava lutando contra a corrente, inclusive conseguindo vencê-la. Quando finalmente avançou, Peter, que sempre torcia para os mais fracos, não se conteve e aplaudiu: era um pedaço de papel muito valente. O pedaço de papel era, na verdade, a ave do Nunca, que remava com muito esforço para alcançar Peter. Usava suas asas como remos, algo que tinha aprendido desde a queda de seu ninho na água. Ela conseguia, até certo ponto, guiar sua peculiar embarcação. Quando Peter finalmente reconheceu a ave, ela já estava exausta. Tinha ido até lá para salvá-lo, oferecendo seu ninho, mesmo com seus ovos dentro. Esse passarinho sempre me deixou intrigado, porque mesmo que Peter tenha sido gentil com ela algumas vezes, em outras ele a importunava bastante. Só posso imaginar que assim como a senhora Darling e todos os outros, a ave se derretia com os dentinhos de leite de Peter. Começou a gritar para ele, tentava explicar os motivos que a levaram até lá. Peter gritava de volta, perguntando a mesma coisa. Não se entendiam porque um não falava a língua do outro. Nos contos de fada, as pessoas conseguem entender e falar com os passarinhos facilmente. Aliás, eu queria que essa história fosse assim, para poder dizer que Peter respondeu à ave facilmente. Porém, como quero contar o que realmente aconteceu, prefiro dizer a verdade. Eles não se entendiam e rapidamente começaram a perder a paciência um com o outro. — Suba... no... ninho — dizia a ave, falando o mais devagar possível. — Assim... você... conseguirá... chegar... até... a... praia..., mas... eu... estou... cansada... demais... para... remar... até... você..., então... você... precisa... nadar... até... aqui. — O que você está resmungando? — foi a resposta de Peter. — Por que não deixa o ninho seguir com a corrente? — Suba... no... ninho... — a ave repetiu tudo outra vez. Peter tentou falar mais devagar, enunciando melhor cada palavra: — O... que... você... está... res... mun... gan... do? E assim por diante.

A ave do Nunca se irritou — ambos tinham o pavio curto: — Seu cabeça de minhoca! — exclamou. — Por que não faz o que estou dizendo? Peter percebeu que ela o xingava e retrucou na mesma hora: — É você! Então, curiosamente, ambos chegaram à mesma conclusão: — Cale a boca! — Cale a boca! Ainda assim, a ave estava determinada e queria salvar Peter a qualquer custo. Seu último e penoso esforço foi empurrar o ninho em direção à rocha. Depois alçou voo, abandonando seus ovos, para deixar claras as suas intenções. Peter finalmente compreendeu, agarrou o ninho e agradeceu a ave com um aceno enquanto ela o sobrevoava. Ela não ficou ali porque esperava agradecimentos, muito menos para ver se ele conseguiria subir no ninho. Ela esperava para ver o que ele faria com seus ovos. Eram dois grandes ovos brancos. Peter os analisou e pensou no que fazer. A ave cobriu seu rosto com as asas, pois não tinha coragem de ver o fim de seus filhos, mas não pôde evitar de dar uma espiadinha por entre as penas. Não sei se comentei que havia um toco de madeira na rocha, fincado ali por bucaneiros havia muito tempo. Servia para marcar o lugar onde um tesouro estava enterrado. As crianças já haviam descoberto esse baú com joias. Endiabrados como eram, atiravam moedas de ouro, diamantes, pérolas e dobrões de prata para as gaivotas. As aves confundiam as peças do tesouro com comida, agarravam, tentavam comer e depois saíam voando ensandecidas com a traquinagem. O toco ainda estava no mesmo lugar, Starkey havia pendurado seu chapéu nele. Era um chapéu de lona impermeável, de aba larga. Peter colocou os ovos nesse chapéu e o pôs na água. Flutuava perfeitamente.

A ave do Nunca percebeu de imediato o que Peter pretendia e gritou para ele, demonstrando sua admiração. Como era de se esperar, Peter gritou de volta, concordando que de fato era digno de admiração. Subiu no ninho, cravou o toco como mastro e amarrou sua camisa nele para usá-la como vela. Enquanto isso, a ave sobrevoou o chapéu e se sentou sobre os ovos como se estivesse em seu ninho. Ela se deixou boiar para uma direção enquanto Peter partiu em outra. Ambos se saudaram. Quando Peter chegou à praia, deixou o ninho em um lugar onde a ave pudesse encontrá-lo. No entanto, ela gostou tanto do chapéu que o ninho foi descartado. Várias vezes, quando Starkey ia até a laguna, ficava observando amargurado o pássaro aninhado em seu antigo chapéu. Já que não a veremos mais, vale dizer que desde esse episódio, todas as aves do Nunca passaram a fazer seus ninhos em formato de chapéu, com abas largas para que os filhotes se sentassem e tomassem ar. Quando Peter finalmente chegou à casa subterrânea, foi recebido com muita comemoração. Chegou quase ao mesmo tempo que Wendy, trazida pela pipa em ziguezague. Todos os garotos tinham aventuras para contar, mas talvez a maior delas foi terem ficado acordados até muito mais tarde do que o permitido naquela noite. Estavam tão empolgados que passaram a inventar desculpas para permanecer despertos. Diziam, por exemplo, que precisavam de curativos. Wendy, por mais aliviada que estivesse ao ver todos em casa sãos e salvos, estava horrorizada com o grande atraso da hora de dormir. Em razão disso, e com um tom de voz que não admitiria desobediências, ordenou: — Já para a cama! No dia seguinte cuidou de todos com muito carinho, fez curativos, e os meninos brincaram com as muletas e tipoias até a hora de dormir.

LAR DOCE LAR

A grande consequência da luta com os piratas na laguna foi os peles-vermelhas se tornarem amigos dos garotos. Peter salvou Lily Tigre de seu fatídico destino e agora os índios estavam dispostos a fazer qualquer coisa por ele. Passavam as noites sentados sobre a casa subterrânea e vigiavam à espera do grande ataque dos piratas, que não tardaria muito. Eles não se afastavam mesmo durante o dia, e fumavam seu cachimbo da paz com cara de que aceitariam algo para comer caso os meninos oferecessem. Chamavam Peter de O Grande Pai Branco e se ajoelhavam aos seus pés. Peter adorava aquilo. — O Grande Pai Branco está contente de ver os guerreiros Piccaninny protegendo sua oca dos piratas — dizia de maneira muito afetada. — Eu Lily Tigre — a bela índia respondia. — Peter Pan salvar eu. Eu ser boa amiga Peter Pan. Eu não deixar pirata machucar Peter. Lily Tigre era bonita demais para se sujeitar àquilo, mas Peter achava que merecia e respondeu concordando: — Que bom. Falou Peter Pan. Sempre que Peter dizia “Falou Peter Pan”, significava que todos deviam calar a boca, o que os índios aceitavam servilmente. No entanto, os peles-vermelhas não eram nem um pouco respeitosos com os outros membros do grupo, a quem viam como meros soldados. Cumprimentavam com um simples “Hao?”, sem entusiasmo. Os garotos ficavam chateados porque Peter parecia não se importar com aquilo. Wendy até compreendia a situação, mas era uma dona de casa fiel demais para permitir críticas ao homem da casa: — Papai sabe o que faz — dizia sempre, sem revelar o que realmente pensava. Na verdade, ela odiava quando os peles-vermelhas a chamavam de “cara-pálida”. Agora, chegamos à noite que ficará conhecida como A Noite das Noites, por conta das aventuras que ocorreram e do seu desfecho. Tinha sido um dia bastante tranquilo, como se tudo estivesse se preparando para algo importante. Os peles-vermelhas, com seus ponchos, estavam nos postos de vigia. As crianças jantavam, com exceção de Peter, que havia saído para ver que horas eram. O único jeito de saber as horas na ilha era procurar o crocodilo e ficar perto dele até ouvir as badaladas do relógio. A refeição era um chá de faz de conta. Os garotos estavam à mesa, engolindo tudo, esfomeados. Com a algazarra e as brigas, o barulho era ensurdecedor, como Wendy bem disse. Para que fique claro, não era a algazarra que a incomodava, mas a falta de modos com que se portavam, derrubando tudo, acusando o coitado do Piuí de ter esbarrado no cotovelo deles. Havia uma regra rígida proibindo o revide durante as refeições; deviam erguer a mão educadamente e comunicar a Wendy qual era a questão: “Quero fazer uma queixa!”. Normalmente, o que acontecia era que ou eles se esqueciam de levantar a mão ou só ficavam reclamando.

— Silêncio! — gritou Wendy, depois de pedir pela vigésima vez que não falassem ao mesmo tempo. — Sua caneca está vazia, Fiapo querido? — Não completamente vazia, mamãe — respondeu Fiapo, depois de averiguar o conteúdo de sua caneca imaginária. — Ele nem começou a tomar o leite — acusou Espeto. Isso era dedurar, e Fiapo não perdeu a oportunidade: — Quero fazer uma queixa do Espeto! Mas John havia erguido a mão primeiro. — Diga, John. — Posso me sentar na cadeira de Peter, já que ele não está? — Sentar na cadeira do papai, John? — Wendy ficou chocada. — Claro que não! — Ele não é nosso pai de verdade — retrucou John. — Ele nem sabia o que era um pai antes de eu explicar para ele. Isso era reclamação pura: — Queremos fazer uma queixa de John! — exclamaram os gêmeos. Piuí ergueu a mão. Ele era o mais acanhado de todos. Aliás, era o único acanhado do grupo, por isso Wendy o tratava com um carinho especial: — Eu não posso ser o papai, né? — disse timidamente. — Não, Piuí. Quando Piuí queria dizer algo, o que quase nunca acontecia, ele fazia isso de um modo um tanto atrapalhado: — E já que eu não posso ser o papai... — continuou, contrariado — Michael, me deixa ser o bebê? — Não, não deixo — respondeu Michael, que já estava no cesto. — E já que eu não posso ser o bebê — insistiu Piuí, cada vez mais melancólico —, será que posso ser um gêmeo? — Claro que não! — retrucaram os irmãos. — É muito difícil ser um gêmeo. — Já que eu não posso ser ninguém importante, gostariam de me ver fazer um truque?

— Não — foi a resposta de todos. — Era o que eu imaginava. — E por fim desistiu. A algazarra recomeçou. — Fiapo tossiu em cima da mesa! — Os gêmeos comeram o bolo primeiro! — Caracol está comendo manteiga com mel! — Fiapo falou de boca cheia! — Quero fazer uma queixa dos gêmeos! — Quero fazer uma queixa do Caracol! — Quero fazer uma queixa do Espeto! — Ai, ai, ai... às vezes, tenho inveja de quem não tem filhos! — exclamou Wendy. Wendy os mandou sumirem dali e se sentou com sua cesta cheia de roupas para costurar. As calças estavam com os joelhos furados, como sempre. — Wendy, eu já estou grande para ficar no berço — reclamou Michael. — Alguém precisa ficar no berço — Wendy respondeu quase com ironia. — Você é o menor de todos. Uma casa boa de verdade sempre tem um berço. Enquanto costurava, os garotos brincavam ao redor dela. Formavam um monte de rostinhos felizes e pernas dançantes em volta da agradável lareira. Essa já era uma cena muito comum na casa subterrânea, mas será a última vez que a veremos. Passos soaram em cima da casa. É claro que Wendy foi a primeira a reconhecê-los: — Crianças, ouço os passos do papai. Ele gosta que vocês corram para recebê-lo na porta. Lá em cima, os peles-vermelhas faziam reverências a Peter. — Vigiem bem, guerreiros. Falou Peter Pan. E então, como em muitas outras ocasiões, as crianças foram recebê-lo felizes. Tudo ocorreu exatamente como nas muitas outras vezes, contudo, pela última vez.

Peter trouxera castanhas para as crianças e a hora certa para Wendy. — Peter, não acha que você os mima demais? — Wendy sorriu, afetada. — Ah, minha velha! — disse Peter, pendurando sua arma. — Fui eu quem disse para ele que os maridos chamam as esposas de “minha velha” depois que têm filhos — Michael sussurrou para Caracol. — Quero fazer uma queixa do Michael! — Caracol disse no mesmo instante. O primeiro gêmeo foi até Peter: — Papai, queremos dançar. — Pois dance, rapaz — respondeu Peter, que estava de ótimo humor. — Mas você dança junto? De fato, Peter era o melhor dançarino, mas fingiu surpresa: — Eu? Meus velhos ossos não aguentam! — E a mamãe também! — Eu? — exclamou Wendy — Uma mãe já tão cansada? — Mas é noite de sábado — insistiu Fiapo. Não era noite de sábado, ou talvez fosse. Há muito tinham perdido a noção do tempo. Sempre que queriam algo especial, diziam que era sábado à noite e então podiam fazer: — É claro, é sábado à noite! — Wendy aceitou, complacente. — Pessoas de respeito como nós, Wendy? — Mas é só entre família. — Está bem, está bem. Então deixaram os garotos dançar, mas só se vestissem os pijamas. — Ah, minha velha… — Peter disse somente para Wendy enquanto se aquecia perto do fogo e ela costurava uma meia. — O melhor jeito de terminar um dia é descansar perto da lareira depois da labuta, com os pequenos brincando em volta. — É muito bom mesmo, não é? — Wendy concordou, bastante feliz. — Peter, acho que o nariz do Caracol é igual ao seu. — E o Michael puxou a você.

Ela se aproximou e pôs a mão em seu ombro: — Peter, querido, com uma família tão grande e agora que meus bons anos ficaram para trás, você não vai querer me trocar por outra, vai? — Claro que não, Wendy. Ele realmente não pensava em trocá-la, mas olhou para ela espantado, piscando como se não soubesse se estava sonhando ou acordado. — O que foi, Peter? — Eu estava pensando... — disse, meio assustado. — Eu sou pai deles só de faz de conta, não é? — Claro — Wendy respondeu muito séria. — É que eu pareceria muito velho se fosse pai deles de verdade — Peter continuou, como se estivesse se justificando. — Só que eles são nossos, Peter, meus e seus. — Mas não de verdade, não é, Wendy? — perguntou aflito. — Se você não quiser, então não — respondeu Wendy, notando claramente o suspiro de alívio de Peter. — Peter — perguntou, tentando se manter firme —, o que exatamente você sente por mim? — A devoção de um filho por uma mãe, Wendy. — Foi o que pensei. — E foi sentar-se sozinha no outro canto da sala. — Você é muito estranha — comentou Peter, completamente confuso. — Lily Tigre é igualzinha. Ela quer algo de mim, mas disse que não quer ser minha mãe. — Com certeza, não! — tornou Wendy, exaltada. — Agora sabemos a razão de seu preconceito contra os peles-vermelhas. — O que é, então? — Uma dama não diz essas coisas. — Tudo bem, então — Peter começava a se aborrecer. — Talvez Tinker Bell me diga. — Ah, Tinker Bell dirá a você, sim — Wendy emendou, irônica. — Afinal, ela é mesmo uma criaturinha solta no mundo.

Foi quando Tink, que estava em seu quarto ouvindo tudo, tilintou algo com grosseria. — Ela disse que adora ser solta no mundo — Peter traduziu. E então teve uma ideia: — Será que Tink quer ser minha mãe? — Sua mula velha! — gritou Tink, irritada. Ela dizia tanto isso que dessa vez Wendy nem precisou de tradução. — Pois acho que concordo com ela — Wendy retrucou rispidamente. Como é estranho ver Wendy ríspida! Porém tinha sido uma baita provocação, e mal sabia ela o que ainda aconteceria antes dessa noite terminar. Se soubesse, não teria sido tão grosseira. Ninguém ali sabia, e talvez tenha sido melhor assim. A ignorância permitiu que tivessem uma hora a mais de alegria e, como essa seria a última hora deles na ilha, que fossem sessenta minutos felizes. Cantaram e dançaram de pijamas uma canção muito engraçada, pois fingiam ter medo de suas próprias sombras. Cantavam sem saber que em breve outras sombras se lançariam sobre eles e os fariam se encolher de medo. A dança era hilária, eles empurravam uns aos outros para a cama e depois para fora dela. Era mais uma guerra de travesseiros do que uma dança. Quando acabou, os travesseiros pediram mais uma rodada, como amigos que sabem que não se verão nunca mais. Contaram muitas histórias até chegar a hora de Wendy contar a sua, de ninar. Até Fiapo tentou contar uma aquela noite, mas o começo era tão chato que todos, inclusive ele, murcharam. Ele disse, desanimado: — É uma história com um começo bem chato. Que tal fingirmos que já terminou? Finalmente, todos se deitaram para ouvir a história de Wendy. Era a preferida deles, mas Peter a odiava. Quase sempre, quando ela começava a contar, ele saía da sala ou tampava os ouvidos com as mãos. Se ele tivesse feito uma dessas coisas, talvez ainda estivessem na ilha. Nessa noite, ele continuou sentado em seu banco, e logo vamos saber o que aconteceu.

A HISTÓRIA DE WENDY

Wendy começou contar a história, com Michael à frente e os sete garotos na cama. — Era uma vez um senhor... — disse ela. — Eu preferia que fosse uma senhora — interrompeu Caracol. — Eu queria que fosse um rato branco — emendou Espeto. — Calados! — repreendeu mamãe. — Havia uma senhora também e... — Ah, mamãe! — choramingou o primeiro gêmeo. — Essa senhora ainda existe ou ela já morreu? — Não morreu, não. — Fico feliz que esteja viva — comentou Piuí. — Está feliz, John? — Claro que estou. — Está feliz, Espeto? — Muito. — Vocês estão felizes, gêmeos? — Estamos, sim. — Ai ai… — suspirou Wendy. — Menos bagunça aí! — ralhou Peter, pois mesmo que em sua opinião aquela fosse uma péssima história, fazia questão de que Wendy a contasse sem interrupções. — O nome dele era senhor Darling e ela se chamava senhora Darling — continuou Wendy. — Sei quem são! — interrompeu John, para irritar os demais. — Acho que também sei — disse Michael, sem muita certeza. — Pois saibam que eram casados — contou Wendy. — E adivinhem o que mais eles tinham? — Ratos brancos! — respondeu Espeto, animado. — Não! — Está tudo muito confuso — observou Piuí, que já sabia a história de cor. — Quietinho, Piuí. Eles tinham três descendentes. — O que é um descendente? — Oras, você é um descendente, gêmeo. — Ouviu isso, John? Eu sou um descendente. — Descendente quer dizer filho — explicou John. — Ai ai... — suspirou Wendy. — Essas três crianças tinham uma fiel babá chamada Nana, mas o senhor Darling se irritou com ela e a amarrou no quintal. Então, todos os seus filhos fugiram voando. — Mas que ótima história — comentou Espeto. — Eles saíram voando — continuou Wendy — para a Terra do Nunca, onde vivem os garotos perdidos. — Eu bem que desconfiava! — interrompeu Espeto sem se controlar. — Não sei como, mas eu desconfiava! — Wendy — exclamou Piuí —, um dos garotos se chamava Piuí? — Se chamava, sim. — Eu estou em uma história! Eba! Eu estou em uma história, Espeto! — Quietinho. Agora quero que pensem o que esses pais infelizes, que perderam seus filhos, estão sentindo.

— Coitados! — gemeram todos, mesmo sem pensar no que os pais estariam sentindo. — Pensem nas caminhas vazias. — Coitados! — Isso é muito triste! — disparou o primeiro gêmeo. — Não sei como essa história pode ter um final feliz — emendou o segundo gêmeo. — O que acha, Espeto? — Estou muito ansioso para descobrir. — Se vocês soubessem como o amor de uma mãe é imenso — Wendy disse, em tom solene —, não ficariam preocupados. Ela tinha chegado à parte da história que Peter odiava. — Eu gosto do amor de mãe — observou Piuí, acertando Espeto com um travesseiro. — Você gosta de amor de mãe, Espeto? — Gosto, sim — respondeu, revidando a travesseirada. — Nossa heroína — continuou Wendy, paciente — sabia que sua mãe sempre deixaria a janela do quarto aberta para que seus filhos voltassem voando, por isso eles ficaram longe muitos anos e se divertiram bastante. — Alguma hora eles voltam? — Quem sabe? — respondeu Wendy, preparando-se para a parte que exigia mais esforço. — Vamos dar uma espiadinha no futuro. Todos se retorceram de um jeito que fosse mais fácil espiar o futuro. — Alguns anos se passaram, e quem é essa moça elegante, que não conseguimos saber a idade, chegando na estação de Londres? — Quem é? — exclamou Espeto, tão exaltado como se realmente nunca tivesse ouvido a história. — Será que é? Sim... Não... É, sim! É a bela Wendy! — Aaah! — E quem são esses dois rapazes muito galantes, agora já completamente crescidos? Será que são John e Michael? São sim!

— Aaah! — Vejam, meus queridos irmãos — a Wendy da história apontou para cima —, ali está a janela ainda aberta. Ah, fomos recompensados pela sublime fé no amor de uma mãe. Assim terminava a história. Wendy e seus irmãos voaram de volta para seus pais, e é impossível descrever essa linda cena, por isso vamos deixar por conta da imaginação de cada um. Todos ficaram tão felizes quanto a bela narradora. Era tudo do jeito que as coisas são. As crianças de vez em quando batem suas asas, como se fossem criaturas desalmadas — e muitas vezes são mesmo, apesar de graciosas. Egoístas, passam um tempo querendo apenas se divertir, mas, quando sentem necessidade de carinho, retornam certas de que devem ser recebidas com abraços, e não com castigos. A fé que tinham no amor de sua mãe era tão grande que achavam que poderiam continuar sendo insensíveis mais um bocadinho. Dentre eles, um conhecia melhor as coisas. Quando Wendy terminou, ele soltou um gemido. — O que foi, Peter? — Wendy correu até ele, achando que estivesse passando mal. Apalpou carinhosamente seu peito e seu estômago. — Onde está doendo? — Não é esse tipo de dor — respondeu Peter, sombrio. — De que tipo é, então? — Wendy, você está enganada sobre as mães. Todos se juntaram em volta dele, pois sua agitação os havia deixado aflitos. Peter decidiu se abrir e contar o que nunca havia dito a ninguém: — Há muito tempo — começou —, assim como vocês, eu também achava que minha mãe sempre manteria a janela aberta para mim, por isso fiquei fora por muitas e muitas noites. Quando voltei, a janela estava trancada, pois minha mãe havia se esquecido completamente de mim. Em meu lugar estava outro garotinho, dormindo na minha cama.

Não sei se isso era mesmo verdade, mas era para Peter. A história alarmou a todos: — Tem certeza de que as mães são assim? — Tenho. — Então é assim que as mães são. Uns monstros! Era melhor não abusar da sorte e ninguém melhor do que uma criança para saber a hora de desistir: — Wendy, vamos para casa? — John e Michael pediram ao mesmo tempo. — Vamos! — respondeu ela, abraçando os dois. — Mas não hoje, não é? — perguntaram os garotos, confusos. Eles sabiam, no íntimo daquilo que chamavam de coração, que uma pessoa pode muito bem viver sem mãe; somente as mães acham que isso não é verdade. — Imediatamente! — replicou Wendy, resoluta, pois um horrível pensamento tinha acabado de lhe ocorrer. Ela pensou: “Talvez nossa mãe já não sinta tanto a nossa falta”. Ficou tão aterrorizada com essa possibilidade que não levou em consideração como Peter se sentiria com sua partida. Disse a ele de maneira um tanto seca: — Peter, você cuida dos preparativos necessários? — Se você quiser — respondeu, tão indiferente como se ela tivesse pedido para passar o sal. Não houve entre eles sequer um “vou sentir muito sua falta”. Como ela não parecia nem um pouco chateada com a separação, Peter também demonstrava o mesmo. Obviamente, estava bastante chateado. Sentia muito ódio dos adultos, sempre estragavam tudo. Em razão disso, se enfiou em sua árvore e respirou bem rápido, cinco inspirações e expirações no espaço de um segundo — havia um ditado na Terra do Nunca que dizia que cada vez que você

respira, um adulto morre e Peter os estava matando o mais rápido que podia, por pura vingança. Depois de passar aos peles-vermelhas as instruções necessárias, Peter voltou à casa e se deparou com a terrível cena que se passava em sua ausência. Tomados pelo pânico de perder Wendy, os garotos perdidos avançavam sobre ela, ameaçadores. — Vai ficar pior do que era antes de ela vir para cá — era o que diziam. — Não vamos deixá-la ir embora! — Vamos prendê-la! — Isso, amarrem-na! Naquele momento crítico, o instinto de Wendy apontou a quem recorrer: — Por favor, Piuí, eu imploro! Não era estranho? Ela recorreu logo a Piuí, o mais tonto do grupo. No entanto, grandiosa foi a resposta. Naquele instante, não havia nada de bobo nele, que falou com dignidade: — Sou só o Piuí e ninguém liga para mim. Prometo que farei sangrar o primeiro que não se comportar como um cavalheiro. Sacou seu punhal e nunca em sua vida pareceu tão imponente. Os outros recuaram, apreensivos. Nesse momento, Peter voltou e os garotos perceberam que não teriam nenhuma ajuda. Aliás, ele jamais permitiria que uma menina ficasse na Terra do Nunca contra sua própria vontade. — Wendy — informou Peter, andando de um lado para o outro —, pedi aos peles-vermelhas para guiarem vocês pela floresta, já que voar te deixa muito cansada. — Obrigada, Peter. — Daí — continuou Peter, com um tom de voz áspero de quem está acostumado a ser obedecido — Tinker Bell vai levar vocês pelo caminho sobrevoando o mar. Espeto, acorde a Tink.

Bateu duas vezes à porta da câmara de Tink antes de ter uma resposta, embora ela estivesse sentada na cama escutando tudo já havia algum tempo. — Quem é? Como ousa? Vá embora! — Tink exclamou. — Você precisa se levantar — ordenou Espeto —, vai levar a Wendy em uma viagem. Tink ficou exultante em saber que Wendy ia embora de uma vez por todas, mas jamais aceitaria ser sua guia de viagem. Para deixar isso claro, tilintou de maneira ainda mais ofensiva. Depois, fingiu que tinha voltado a dormir. — Ela disse que não vai — contou Espeto, abismado com tamanha insubordinação. Peter caminhou firmemente até o quarto da fada: — Tink! — bradou. — Se você não se levantar e se arrumar agora, vou abrir as cortinas e todos vão te ver de camisola! Tink se pôs em pé de um salto: — Quem disse que eu não ia me levantar? Enquanto isso, os garotos observavam Wendy, desesperados. Ela, Michael e John estavam prontos para partir. Era um desconsolo não apenas pela partida, mas porque tinham a sensação de que ela viveria uma aventura para a qual eles não foram convidados. Pensando que sentiam algo mais nobre do que somente o interesse pelo novo, Wendy se derreteu: — Meus queridos, se vocês vierem comigo, tenho quase certeza de que convenço meus pais a adotar todos. O convite era feito especialmente a Peter, mas os garotos pensaram apenas em si mesmos e começaram a pular de alegria. — Mas eles não vão achar que é muita gente? — perguntou Espeto, no meio de um salto. — Não vão, não — tornou Wendy, planejando tudo naquele mesmo instante. — Colocaremos algumas camas na sala de estar, e quando chegar visitas, nós as escondemos atrás dos biombos.

— Peter, podemos ir? — todos imploraram. Achavam natural que, se partissem, Peter iria junto, mas a verdade é que nem se importavam muito com isso. Crianças são assim: sempre que se empolgam com uma novidade, não se importam em abandonar seus entes queridos. — Tudo bem — concordou Peter com um sorriso amargo. Imediatamente, todos se apressaram em arrumar suas coisas. — Agora, Peter — disse Wendy, achando que estava tudo ajeitado —, vou dar seu remédio antes de irmos. Ela adorava dar remédio a Peter e, sem dúvida, dava mais do que o necessário. Era apenas água, mas ficava em uma garrafa que ela sacudia e contava as gotas. Tudo tinha certo ar medicinal. Só que dessa vez não deu a dose a ele. Depois do preparo, a expressão no rosto de Peter a fez sentir um aperto no coração. — Arrume suas coisas, Peter — Wendy começou a tremer. — Não — ele respondeu, fingindo indiferença. — Eu não vou com vocês, Wendy. — Vai sim, Peter. — Não vou. Para provar que não se importava com a partida dela, Peter começou a saltitar pela sala, tocando uma melodia alegre com sua flauta insensível. Ela teve de correr atrás dele, por mais vergonhoso que fosse. — Vamos encontrar sua mãe — tentou persuadi-lo. Se Peter um dia teve mãe, não sentia mais falta nenhuma dela. Estava se virando muito bem sem uma. Quando pensava sobre as mães, ele lembrava apenas dos aspectos negativos. — Não — respondeu Peter, decidido. — Talvez ela ache que eu fiquei velho demais. Quero ser um menino para sempre. Só quero me divertir. — Mas Peter... — Não. Então Wendy teve de contar aos outros:

— Peter não vai. Peter não vai! Olharam todos para ele, atônitos, cada um com sua trouxa amarrada em um cabo de madeira sobre os ombros. A primeira coisa que pensaram foi que, se Peter não iria, provavelmente tinha mudado de ideia e não os deixaria mais partir. Mas Peter era orgulhoso demais para isso. — Se vocês encontrarem suas mães — advertiu com voz sombria —, tomara que gostem delas. O terrível cinismo daquela frase causou uma impressão desconfortável nos garotos. A maioria ficou em dúvida. “Será que voltar era maluquice?” era o que suas expressões diziam. — Bom, então — continuou Peter —, sem frescuras nem choramingos. Adeus, Wendy — e estendeu a mão alegremente, como se dissesse para partirem logo, pois tinha outros compromissos. Wendy deu a mão também, sentindo que ele não aceitaria um dedal. — Não se esqueça de trocar as cuecas, Peter — disse Wendy, buscando uma desculpa para ficar um pouco mais. Ela sempre se preocupava com a higiene dos meninos. — Não esquecerei. — E vai tomar seu remédio? — Vou. Parecia que não faltava mais nada. Um silêncio incômodo se instalou. Apesar disso, Peter não era do tipo que perdia a compostura na frente dos outros: — Está pronta para ir, Tinker Bell? — indagou Peter. — Sim, capitão. — Então vá na frente. Tink saiu em disparada pela árvore mais próxima. No entanto, ninguém a seguiu, pois foi justo nesse momento que os piratas começaram seu terrível ataque aos peles-vermelhas. Na superfície, onde até então estava tudo tranquilo, o ar se rasgou com os gemidos e o ruído de aço contra aço. Debaixo da terra, reinava um silêncio absoluto. As bocas se abriam, mas não diziam nada. Wendy caiu de joelhos, estendendo seus braços para Peter. Todos fizeram o mesmo, como se estivessem atraídos, suplicando em silêncio para que não os abandonasse. Peter desembainhou sua espada, a mesma com que ele acreditava ter matado Long John Silver, e o desejo pela batalha faiscava em seus olhos.

AS CRIANÇAS
SÃO CAPTURADAS

O ataque pirata pegou todos de surpresa, o que prova a desonestidade do inescrupuloso Hook. Surpreender os peles-vermelhas é algo que está além da capacidade dos homens brancos. De acordo com todas as leis não escritas sobre as condutas de guerra contra os selvagens, os ataques devem sempre partir dos pelesvermelhas. Eles, com sua astúcia peculiar, só atacam ao amanhecer, horário em que a coragem dos homens brancos é mais frágil. Aos homens brancos cabe construir uma paliçada improvisada no topo de uma colina que fique ao lado de um riacho, pois estar longe da água é morte certa. Ali, devem aguardar o ataque. Os inexperientes agarram seus revólveres ao menor ruído, enquanto os veteranos dormem tranquilamente até pouco antes do amanhecer. Durante a noite longa e escura, os batedores índios rastejam como serpentes sobre a grama, sem deslocar uma folha sequer. Entram e saem de arbustos como se fossem portas, silenciosos como uma toupeira se enfiando na areia. Não se ouve nenhum barulho, exceto quando algum deles imita perfeitamente o uivo de um coiote solitário. O grito é respondido por outro guerreiro. Muitos são até melhores do que os próprios coiotes, que não uivam tão bem. Assim se passam essas horas glaciais. O prolongado suspense é terrível aos caras-pálidas que vivenciam aquilo pela primeira vez. Para os mais experientes, os uivos medonhos e os apavorantes momentos de quietude são apenas sinais da passagem da noite. Esse era um procedimento comum e muito conhecido por Hook, de forma que, se ele o desrespeitou, jamais poderia alegar que o fez por ignorância. Os Picaninnies, por sua vez, confiaram equivocadamente na honra de seu inimigo; todos os seus movimentos durante a noite contrastaram profundamente com a deslealdade de Hook. Não adotaram nenhuma atitude que não fizesse jus à reputação de sua tribo. Com seus sentidos atentos, habilidades que encantam e aterrorizam homens brancos, sabiam da presença dos piratas na ilha desde que o primeiro galho seco foi quebrado pelas botas de um deles, pois quase de imediato começaram os uivos. Cada palmo de chão, do lugar onde Hook desembarcou até a casa subterrânea, foi minuciosamente examinado pelos guerreiros, que calçavam mocassins com saltos na parte da frente. Encontraram apenas uma pequena colina em cuja base corria um riacho. Sabiam que Hook não teria escolha a não ser acampar ali e aguardar o amanhecer. Dessa forma, tudo foi previsto com uma astúcia quase diabólica. Os índios se enrolaram em seus ponchos, com o temperamento imperturbável que constitui para eles o bem mais valioso de um homem. Acamparam sobre a casa esperando o momento de enfrentar a “morte-pálida”. Embora estivessem bem despertos, esses confiantes selvagens sonhavam com refinadas torturas para Hook quando foram traiçoeiramente surpreendidos por ele. Pelos relatos posteriores dos poucos índios sobreviventes ao massacre, aparentemente Hook não passou um instante sequer sobre a colina, apesar de estar observando o lugar, com certeza,

desde a luz do fim de tarde. De início, sua mente ardilosa não pensou em esperar. Ele manteve seus homens à espreita por quase toda a noite. Atacou sem nenhuma estratégia, lançando-se contra o inimigo sem piedade. O que poderiam fazer os estupefatos batedores — que eram mestres em todas as artes de guerra, menos nessa —, além de tentarem revidar, indefesos, expondo-se aos ataques fatais enquanto recorriam aos patéticos uivos de coiote? Ao redor da destemida Lily Tigre ficaram doze de seus melhores guerreiros, que subitamente viram os pérfidos piratas se abater sobre eles. O relance da vitória se despedaçou diante de seus olhos. Os piratas não seriam mais torturados em estacas. Os índios sabiam que o momento de partirem para o Feliz Campo de Caça havia chegado — o eterno campo para onde se vai após a morte. Ainda assim, como fizeram seus antepassados, lutaram bravamente. Tiveram a chance, inclusive, de formar uma falange de defesa que seria impenetrável caso agissem rapidamente, mas essa era uma prática proibida segundo as tradições de seu povo. Está escrito que um nobre guerreiro jamais deve demonstrar surpresa frente ao homem branco. Por mais terrível que o súbito ataque dos piratas tenha sido, a princípio se mantiveram estáticos, sem mover um músculo sequer, como se o inimigo estivesse ali porque havia sido convidado. Depois de nobremente cumpridas as exigências da tradição, por fim sacaram suas armas e o ar se rasgou com gritos de guerra. Mas já era tarde demais. Não cabe a nós dizer se aquilo foi um massacre ou uma batalha. O certo é que muitos dos melhores da tribo Piccaninny perderam a vida. No entanto, os peles-vermelhas não morreram sem levar consigo alguns bucaneiros. Lobo Fino morreu junto com Fredo Pedreiro, que não mais aterrorizará os mares do Caribe. Entre outros piratas que esticaram as canelas estavam Jorge Gaivota, Carlos Carlouco e Francês Fugido. Carlouco tombou pela machadinha do temível Panterinha, que conseguiu